quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A Língua

Poema extraído do livro Poesias, de Olavo Bilac
Língua Portuguesa
Olavo Bilac
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

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Texto extraído do Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, de Fernando Pessoa.
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa . Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

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Texto de quem escreve no blogue
A língua mais bonita é a portuguesa. É a língua que eu falo, escrevo e peço um café na padaria. E não à toa, é de se ver que aqui, neste país do hemisfério sul, a cena do português é tão mais bonita e interessante que a scene da outra língua. Mesmo a scene da outra língua tem um c, que não podemos deixar de grafar quando quisermos escrevê-la, portanto há c tanto em cena como em scene.
Mas há "um" sena interessante (assim, sem o c): o rio que banha a cidade de Paris, conhecido em outra língua como la Seine.

Entre cenas, eu sou um operário e apaixonado pela língua (a portuguesa), pois foi neste idioma que aprendi os primeiros sons e cresci. E não convinha ser diferente, eu não fui alfabetizado em outra língua.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Crer no incrível

Estou cercado por lepitópis. Vejo um pequeno, branco, logo a minha frente; um logo a leste; dois a oeste; um a sudoeste; e outro a noroeste. Agora percebo outro mais adiante e outro a duas filas a oeste. E agora, que viro a cabeça para trás, vejo um outro lá mais ao fundo. Uns chegando, outros indo. Ações num gerúndio profuso. Na falta de um béquispeice, utilizo a minha borracha ponteira para apagar uma letra, uma palavra que não coube, por questões mais semânticas que sintáticas. Subesisto no mundo da digitalidade contínua. Não há teclas de espaço no meu espaço. Há um espaço metalúrgico, um madeireiro e um seringueiro. Apontador, lápis e borracha. Um papel. E o papel, sim, a tábua, a minha tela. O progresso tão perto, tão longe. Tão fácil, tão difícil. A insubstituível caligrafia grunhe ao qwertyuiop. A borracha borra o grafite no que não deveria ter sido escrito. O borro como uma cicatriz, um acidente no texto. Um borrão alegre como lembrança de uma inadequação. O meu polegar e o meu indicador fazendo as vezes do Ctrl e do Alt ao virar das páginas. Há pautas.

Estou numa biblioteca, a qual alguns já denominaram universo. Aqui, em latitudes diferentes, pontos luminosos de cristal líquido e livros se alternam. Não vejo nada aqui que se assemelhe ao que chamam de cosmo, a não ser um barulho disfarçado de silêncio. Não é ficção, nem metáfora ou memória. É só o insustentável modo de tentar compreender o que não se é. E quantos lepitópis por aí... Meu lápis, meu caderno e minha borracha são um trio bom, ainda que ideia nenhuma rascunhada no papel acenda uma lâmpada ou me transforme num cidadão do mundo. Mas dá-me liberdade.

Aqui sou apenas o usuário da biblioteca que investiga o seu redor, o que não faz de mim melhor. Por que não? Estou escrevendo e sentindo em alguns momentos que não deveria ter entrado na biblioteca. Mas entrei. Acreditei nos universos, nos lápis e nem tanto nos lepitópis. Me fiz crer no incrível - nestas três simulações da vida.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Porter

From This Moment On - canção de 1951 composta por Cole Porter para o musical Out of This World.

Tantos já a gravaram, mas a ouço repetidamente na VOZ de Frank Sinatra, no álbum Frank Sinatra Sings - The Select Cole Porter .

Gosto dos versos

"No more blue songs
Only hoop-dee-doo songs"


Antecedidos por um dia feliz

"From this happy day"


Aqui, logo abaixo, a letra toda todinha


From This Moment On


From this moment on
You for me, dear
Only two for tea, dear
From this moment on

From this happy day
No more blue songs
Only hoop-dee-doo songs
From this moment on

For you've got the love I need so much
You've got the skin that I love to touch
Got the arms to hold me tight
Got those sweet lips to kiss me goodnight

From this moment on
You and I, babe
We'll be ridin' high, babe
Every care is gone
From this moment on

From this moment on
You for me, dear
Only two for tea, dear
From this moment on

From, from this happy day
No more blue songs
Only hoop-dee-doo songs
From this moment on

For you've got the love that I need so much
Yeah, you've got the kind of skin that I love to touch
And you've got the arms that can hold me tight
You've got those lovely lips just to kiss me goodnight

From this moment on
You and I, babe
We'll be ridin' high, babe
Every one of our cares are gone
From this moment
From this very moment
From this moment on

Rilke

Sage mir, Vogel, landest du stets
dort, wo das Herz dich hinträgt?
Täuschst du dich niemals,
fügst dich niemals dem Winde?
Ich gehe auf diesen Flügeln
der Seele oft sehr ängstlich
Jener unbeschäftigte Engel
eines herauf Richtung Himmel
schlafenden Mädchens, er bringt mir
wieder mein Herz.

Rainer Maria Hilke,
August 1924


Tradução livre do poema de quem escreve neste blogue:

Conte-me, pássaro, onde pousará
onde sempre o coração o levará?
Nunca te enganas,
nunca renuncias ao vento?
Eu sigo sobre estas asas
da alma sempre muito inquieta
deste anjo desocupado
que ruma ao céu
menina adormecida, que ele me traga
novamente o meu coração.

Rainer Maria Rilke,
Agosto 1924

domingo, 13 de setembro de 2009

Glicerina

Silence is all we dread.
There's Ransom in a Voice -
But Silence is Infinity.
Himself have not a face.

Emily Dickinson


Eu lavo a saboneteira tirando dela os restos de outros sabonetes, restos de água e de outros detritos, para deixá-la pronta para o novo sabonete de glicerina que comprei. Estou sob a água do chuveiro enquanto a limpo para o novo sabonete. A água escorre pelos cabelos, desliza no pescoço, torso e partes íntimas e descem perfumando todo o meu corpo com os rastros do perfume glicerinado do sabonete, condensando na espuma uma espécie de paz que espalho pelo corpo.

A tarde é bonita. Há um sol vigoroso lá fora. Vejo tudo da janela do banheiro, ainda que não dê para ver muito. E sinto um sol bom. O dia é bonito. Vi um filme com fotolitos de um país bonito. Acho que não era o meu. E eu queria passar a tarde limpando a saboneteira, lavando o meu corpo e deixar que a figura do sol se resumisse aos rabiscos entre águas que sobravam de fora para dentro através da pequena janela do banheiro. Eu sabia que poderia, se quisesse, ter mais.

Acabo o banho, com o prazer de ter trazido a mim, com a água e com o perfume, o sossego de que precisava, apesar das preocupações não terem sido escoadas pelo ralo como a espuma muito branca e cheirosa do sabonete de glicerina que comprei.

Aquele país do filme parece estar longe, se é que existe. Mas existe. Eu sei porque eu já ouvi falar dele, daquelas cores, daquela música.

Seco o cabelo, os olhos daquela paisagem, a do filme e a da janela do banheiro. Com a toalha e um suspiro fundo, longe. Um pouco de azul e branco mesclados a um amarelo tranquilizante, de um tom 'maracujá', é o tom da paisagem, do filme, da minha imagem numa esquina de uma história não fantástica, mas de uma força muito azul, muito branca e de um amarelo-maracujá, dão-me sono, olhos bem abertos para o lado de 'lá'. E eu nem percebi que já estava jogado sobre a cama, sobre o edredom amarfanhado que me cobre já há tantos sonos.

Preciso de uma música de dentro para acalmar o que está fora.

Puxo a cadeira. Sento um pouco. Pego o telefone para dizer para alguém como me sinto bem, e o quanto me falta. Mas não, não é assim. Ninguém precisa ouvir isso. Eu não preciso dizer, por isso eu quero pensar no país bonito e naqueles fotolitos que de alguma maneira me fazem acreditar em outras possibilidades que não só aquela da janela do banheiro. Como o sol imensamente pode ser mais quente, mais...

É suave a água escorrer assim. Sinto um cheiro bom que fica na minha pele por algumas horas, talvez até o próximo enxague. A glicerina menos rude com a fragrância. A esperança menos rude com o dia.

Sentei para pensar, para escrever e não consegui. Não consegui misturar o cheiro às imagens com algum texto que poderia ter escrito. Não pude ou talvez não quis.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Os começos são muitos

Os começos são muitos. Necessários. Sem eles não há um fim. Um viés, uma razão. Nossos começos existiram para que pudéssemos então existir. Somos livres, partindo-se do princípio, do arbítrio que nos foi dado, como as teses são mesmo de liberdade. Para as razões há um porquê de começar para ser, razoar e perecer. E se ainda não começamos?
Convencemo-nos diariamente de que somos de uma matéria impetrável e indestutível de rudezas. Mas, na lucidez, sabemos e não ignoramos o quão parcos somos, e dessa rudeza não nos damos conta na maioria do tempo, pois a vida é algo como não ter lucidez. Aparte disso, há de começar a viver. 'Hei de viver.' 'Hei de ser reavivado nas memórias de quem conheci.' E se não temos esperança?
Soletramos discórdia, sim. Manejamos armas, sim. Soerguemos lamúrias, sim. Mas o etéreo está na imaginação do que é 'simples', do que é 'comum', o que não somos, quase sempre. Ser 'um' das desadivinhações. E ocupar-se em atentar ao cheiro do bosque de bétulas e das sâmaras espargidas pelo chão, ainda que o nosso bairro não tenha bétulas, num clima abafado em que aguardamos o gosto da chuva, e também o cheiro dela, da água que cai misericordiamente. É o queixume da chuva que bate no telhado e ecoa em alguma poça do quintal, dos quintais. E se não temos quintal?
Um texto de começo, outro de pensamento, outro de fim. Para razoar, outra vez, as nossas conjurações horárias, diárias. E se não há tempo?
Tudo começou e outra vez terminou. Estamos num átimo entre o precipício do princípio e da afinidade com os fins. Estamos juntos no mesmo mundo, na mesma entoada. E queremos saber como estamos, quem abençoamos e como vivemos. Num novo começo para principiar o fim. Os começos necessários são muitos. Sem um fim não há 'eles'. Livres somos partindo-se do arbítrio do princípio. Para uma razão há várias razões e sem elas não éramos? Não existiríamos.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Os infinitos hexágonos que constituem o mundo


Decifre o texto ou lhe tiro a vida! Decifre a vida ou lhe tiro o texto!
Quais são os hexágonos - estes em números insondáveis, por isto infinitos - que fazem do mundo "mundo"? Um mundo inexclamável, que não deveria ser destacado num arranjo ortográfico entre aspas, pois as aspas são uma espécie de raspas de letra, não são? Uma espécie de cedilhas inutilizados, pois há tão poucos "c" para tantos cedilhas, aí, nesta infinitude de sinais, símbolos, arranjaram um emprego para utilização destas sobras, raspas ortográficas que são as " ".
E já são infinitos os códigos e por isso não há outra razão de ser assim também o mundo.
Se vão, levem-me então. Levem-me para que eu seja levado leve. (Grifo meu)
O mundo é uma biblioteca infinita ou a biblioteca é um mundo infinito? O que pode nos esclarecer as nossas letras, pontos, vírgulas, reticências, exclamações, números, algaritmos e as infinitas combinações entre os mesmos? Tudo ou nada...
"Nada" me faz lembrar o "Tudo" que há para ser preenchido ou o "Nada" pré-existente. Decifro as moscas que andam sobre a laranja, a ruína porque andei onde batem as ondas, as pedras que chutei que cortavam o caminho, ou os caminhos. Tudo está descrito e explanado nos infinitos hexágonos que fazem disto um mundo que possibilite a esfera de um outro mundo extinto que coexistiu paralelamente à metafísica desse nosso outro mundo, que acostumamos identificá-lo nos sonhos espessos que se abrem, vez ou outra, para o que entendemos de "mundo real". E nada disso é sonho. Nada mais além de "arranjos ortográficos".


"...La Biblioteca existe ab alterno. De esa verdad cuyo colorario inmediato es la eternidad futura del mundo, ninguna mente razonable puede dudar. El hombre, el imperfecto bibliotecario, puede ser obra del azar o de los demiurgos malévolos; el universo, con su elegante dotación de anaqueles, de tomos enigmáticos, de infatigables escaleras para el viajero y de letrinas para el bibliotecario sentado, sólo puede ser obra de un dios. Para percibir la distancia que hay entre lo divino y lo humano, basta comparar estos rudos símbolos trémulos que mi falible mano garabatea en la tapa de un libro, con las letras orgánicas del interior: puntuales, delicadas, negrísimas, inimitablemente simétricas." (A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, em Ficções (1941))

domingo, 6 de setembro de 2009

De Bota pra Copa

foto: arquivo pessoal

Baía de Guanabara, que para Levi-Strauss parecia uma boca banguela, num pôr-do-sol de junho de 2009



Desembarcávamos na praia de Botafogo numa manhã de insucessos, indescansável. (Como eu queria agora uma escrita mais corrente sem precisar usar sufixos como "in", sinônimos, não incerto, de infelicidade.) Mas havia uma vontade muito grande do descanso, da manhã descansável. E como era ruidosa a paciência que temia nos dominar, ficamos então dominados pela impaciência. O alojamento não havia recebido a nossa confirmação de reserva. "Que reserva?" O albergue era "lindo" o que não nos causaria surpresa se ali estivessem hospedados alguns belos senhores da família
Muridae. Fomos atendidos por um dos administradores gringos da estalagem, quase sob a escuridão, parecia-nos proibido o acendimento das luzes para atender educamente hóspedes que chegam para ocupar os aposentos. Não sei a razão. Por que pagaríamos por "tudo" aquilo? Mas não pagaríamos mais, graças as intervenções divinas que não fizeram chegar a eles o nosso e-mail de confirmação da muquifa reserva. E não havia mais vaga. Graças! Ah, muito melhor assim seria. Com poucas pilas no bolso, teríamos de nos revirar para encontrar outro lugar para dormir, tentar um dia descansável.

Raivosos pela insolência sofrida, saímos andando por Botafogo enquanto pensávamos no que seria, no que poderia, no que viria, no que não será, no que não poderá e no que não virá. As insistentes ponderações de grana nos martelavam a cabeça. Procurar um hotel, um outro alojamento, outro hostel, outro albergue, outra pousada, outro quarto, outro abrigo, quando àquela hora já um tapume de madeira que nos protegesse da maresia, do som periódico da avenida e do barulho dos carros, e onde poderia nos proteger de uma chuva fina, tal tapume seria de infinitas estrelas.

E não sei porque razão havíamos entrado na São Clemente, o que me fez lembrar do
Balé do Pato em Botafogo, de um dos mineiros mais cariocas, Paulo Mendes Campos, que narra, dentre outras, um fato com o salva-vidas que testemunha, por força de macumba pra ter o marido de volta, uma francesa indo a um aviário, que ficava ali no comecinho da São Clemente, pra comprar um pato branco pra soltá-lo na praia. Se o pato seguisse pela baía, o marido voltaria; se o pato voltasse, saísse da água, o marido não voltaria mais. Mas Alexandrino, o salva-vidas, não perderia tempo, lógico. Quando a madame fosse embora nadaria até o pato, e como pediria posteriormente à patroa para cozinhá-lo ao molho pardo.

Alguns acreditam em destino, eu acredito em travesseiro. Pois era só naquilo que eu queria acreditar. Mas seja o destino ou a atração definitiva por uma cabeceira no miolo de Copacabana, acabamos por parar a uns quarteirões do Copacabana Palace. Estávamos tão perto e tão longe do hotel das estrelas. Mas estrela de verdade era brilhar seis andares sobre a avenida Nossa Senhora de Copacabana e ouvir o murmurinho do Rio de Janeiro. As saliências cariocas. As desmedidas fluminenses. Não era à toa. Recordava-me de outros acepipes, sobre aquela mesma e eterna Copacabana. Esses dias são as matizes de sonhos. Poderia pensar? Não. Definitivamente, não. Exclamávamos que não poderíamos pensar. Deixemos que os poderes astrais que nos levaram incontinentis pelas calçadas da zona sul nos fizessem enfim sobre o pé do céu dormitar por algumas horinhas apenas, e que a insônia paulistana fosse insuflada de uma tomada de ar quando no caminho das arestas sem fim do hedonismo carioca.

A Botafogo dos planos convaleceu-se à pequena e larga história do dormitório copacabaniano, ou copacabanense, ou copacabanês. Há tantos houvera tantos. Lembrança de chuva, de mar, de nuvem. E quantas nuvens...

Mas sobrava sol. E foi tudo tanto assim tão. Para nós. A leveza suja de Botafogo valorizou a enorme e mascarada Copacabana. Terminando igualmente igual num outro texto em que de original não há nada senão ser o próprio palimpsesto de um outro, de uma outra lembrança, outra viga do tempo e da memória, no caminhar vadio, alegre, de Botafogo à Copacabana.