quarta-feira, 27 de agosto de 2008

26.08.96

No meio da calçada tinha uma árvore. Não, não era frondosa. Nem era bem assim uma árvore. Era uma árvore, mas não era sombra de alguma que pudesse dar sombra. Na verdade, era uma tentativa do que poderia, e viria ser, segundo meu pai, um bom lugar para o "arreio", nos dias de sua aposentadoria. Prometia até balanço. Mas a árvore não vingou, e meu pai teve de retirá-la, atrapalhava já o movimento dos carros - ainda que nunca tenhamos tido um - da garagem. Na época, meu tio a alugava para pôr o seu carro, um Monza 94.

A muda tentou vencer, mas ficava bem entre os dois portões de entrada, o do carro e o das pessoas. A muda calou-se de vez em 26.08.96, há exatos 12 anos. Lembro bem. Este dia foi fotografado pelo meu coração de estudante colegial. No dia em questão eu não iria a aula, por licença médica - havia machucado meu dedo mindinho da mão direita gravemente (nem tanto sim, apenas recurso estilístico) num jogo de vôlei. Sou destro, portanto, não poderia escrever. Aquela semana era de puro ócio (ou nem tanto assim, o espírito pubescente não deixava - outro recurso de estilo). Naquele vinte e seis de agosto meu pai decidiu retirar o entrave, a muda que havíamos ganhado num daqueles projetos da prefeitura para arborizar a cidade, ladear as ruas com um pouco mais de sombras saudáveis, que não a dos edifícios.

Muitos vizinhos ainda possuem as suas, agora árvores de verdade alcançando os fios da rede elétrica; com rabiolas e pipas enroscados em suas copas ou mesmo nos galhos mais baixos, galhos que também servem de suporte para as latinhas de cerveja de domingo - para as rodas de homens, para o som alto dos carros, para as crianças barulhentas. As árvores ajudam a suportar o sol mais forte das horas das conversas dos finais de semana, são o ponto de referência para o encontro das crianças depois da escola.

As outras árvores já estão tão grandes que os seus donos nem mais as notam; comigo sucede o inverso: é a ausência da minha - que nem chegou a ganhar o título de árvore - que é notada e reavivada em texto, mesmo 12 anos após a sua extinção. Quanto o universo se expandiu, enquanto eu recordava ausência e outros esqueciam presença? Não sei. Isso nem deve ser um debate importante.


Pois, neste vinte e seis (eu gosto de escrever números por extenso, mas vario quando quero; bem, aqui não há regra, e o texto é mesmo meu) meu pai a arrancou de lá, do quadrado central da calçada; não fossem sonhos pequenos, outras coisinhas mais, aquele seria um dia qualquer perdido na existência dos demais. Sinto a textura do cimento fresco preparado pelo meu pai para tapar o buraco da calçada. O produto arenoso escorregando pela pá, quase um ritual, simples, bobo, trivial, como tapar um buraco de um solado desgastado - os sapateiros que o digam. Um momento ordinário para o mundo, mesmo para mim então; mas era uma árvore a menos no mundo, num mundo que nem a conhecia; mas eu a conhecia e então posso dizer que o momento não era tão ordinário assim, pois era um momento meu. Nossos momentos são nossos de forma que um instante de nossa vida que seja, por mais desimportante, não será ordinário, pelo menos aos de cabeça sã e com o juízo em dia.

A árvore estava sem respirar com as raízes expostas, deitada num canto da calçada, e meu pai terminava o trabalho - eu queria tentar ser útil, queria ajudá-lo, ao menos para alisar o cimento no piso, no lugar que foi residência de uma arvorezinha que agora jazia em seus instantes derradeiros no outro canto da calçada.


Ontem, 26.08.08, completou doze anos desde que eu estive ali no meio da calçada e, com a mão direita imobilizada pelas gazes e pela tala no dedinho, consegui, com um graveto (um galhinho da árvore) , inscrever meu nome e a data: "26.08.96 - MARCELO"; e não sabia que, mesmo passado razoável tempo, esta data seria motivo de forte lembrança. Muitos daqueles que estavam comigo naquele dia, como a árvore, já não existem mais. Um ano e um mês depois do episódio meu pai se despedia, tal como um rito, como se já tivesse cumprido sua tarefa especial. Meu tio, o do carro, alguns anos depois, também se despedia. Brilham onde eu não sei. Meu pai não era árvore, a árvore não era gente, meu tio também não atrapalhava o caminho. Mas todos, por razões diferentes, não estão mais aqui.

Muito mudou e pouca coisa mudou - é difícil entender. Hoje tenho barba, mas ainda não me casei. Sou um homem, mas tenho sonhos de menino. Ainda vejo o mesmo rosto no espelho, e sinto as mesmas saudades, cada vez mais intensas, já que este é o mesmo coração daquela época e será até a minha despedida destes dias de poucas árvores, muito sol, e de infinitas recordações. Há um certo maniqueísmo, a velha oposição do bom e do mau, nestas digressões. Mas o que posso fazer, se são as idéias que conservo em mim? As coisas vão existindo e passando, como naquela época, e é triste não poder registrar tudo no cimento fresco: tem que ser na cabeça e, quando puder, sorrir e compartilhar com quem merece. Repetidas vezes a vida se mostra um círculo redondinho e, paradoxalmente, cheio de arestas irregulares, e nestas que guardamos tudo, para que não nos esqueçamos, para que nos lembremos das calçadas porque caminhamos, das pessoas porque vivemos.

No meio do caminho tinha uma árvore, no meio da árvore tinha um caminho.
No meio do coração tem gente, no meio da gente tem coração.
Pra viver, tenho agora que parafrasear poesia, se não é...

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Moscou!


Na imagem, vemos as bonecas russas ou também denominadas Matryoshkas: um dos símbolos da Rússia. Inicialmente, criada para representar a família, vinham agrupadas em 8, uma dentro da outra. As Matryoshkas originais são as de madeira com trabalho estritamente artesanal. A origem das bonequinhas russas data de 1890, criação de Vassily Zvyôzdotchkin e Serguei Malútin, expostas pela primeira vez no pavilhão do Império Russo na Exposição Internacional de Paris, em 1900. O nome Matryoshka provém de Mater = Mãe e Oshka = sufixo diminutivo, o que quer dizer "Mãezinha".

Moscou: terra das bonecas e das mulheres mais lindas. Já viu como são lindas as russas? Vou pra lá daqui a pouco, espera só...

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Nos Acepipes de Copacabana

Barata Ribeiro, boas horas dos acepipes dentre outras horas entre outras coisas. O mar selando o território com sua canção nas ondas que batem ocas, lambem a areia, com a água a arrancar um banho roubado. Caminhar sem parar, peitar o mar e pedir benção à Nossa Senhora, a de Copacabana. Longínqua caminhada, imperceptível, por Drummond, pelo Forte que fora dos 18 revoltosos, mas que agora são dos revoltosos, não dos da Atlântica, mas dos da Paulista que tomam a Atlântica. Caminhada inesperada, despreparada, mas tão suave quanto não ver o Sol no Arpoador. O Sol de lá deve ser grafado com maiúscula, ainda que as Nuvens, também maiúsculas, o supere por alguns dias.
Enternecer-se no ar quente dos parques, das ondas que balançam o coração, até quando perceber-se já em Ipanema, sem garoto, sem garota, mas com alegria que não cabe em nenhum dos meninos que jogam bola por ali. Tomar poesia na Vinícius de Moraes que deságua na Vieira Souto que desemboca em Ipanema que desfalece em nossos corações. São tantas imagens, do Rio e do Mar, que não se acredita e duvida-se do soprar do vento e do barulhinho de longe da moçada gritando; mais alegrias na caminhada enquanto se vê o Leblon lá ao fundo.
O café "à la São Paulo" ficou lá na Nossa Senhora, já o almoço era procurado desde que enveredávamos Vinícius adentro, e os passos se iam Rio afora, como na procura do abrigo para acalentar os calcanhares cansados e os estômagos vazios; no início de tarde era a vez de iniciar-se o reinício das energias, religiosamente cumpridas e angariadas no sono da viagem, na viagem do sonho. Tomar um ônibus seria sensato, tomar um ônibus foi sensato quando surgiu, repentinamente, na Visconde Pirajá, ir até a Urca.
Aproximar-se da história, dos livros, dos sentimentos, da alta sociedade que ficara para trás, num tempo que não existe: rever o que nunca fora visto; o ônibus serpentear nas ruas pequenas, diminutas e estreitas da Urca. Da janela do ônibus já se vê o morro que dá nome à vila, e já se vê, numa imagem relativamente doce, o Pão de Açúcar. "Quantos morros, quantos solavancos aguentará nosso coração?" Os paulistas das sebes comiam pastéis de camarão e bolinho de bacalhau ali, entre o Leme, Copacabana e Botafogo; observa-se ao longe as galerias e janelas da Central do Brasil, a ponte que conecta o Rio pelo mar à Niterói; da mureta, que barra o mar, testemunha-se o resplandecer do Sol suave, que burla a regra das nuvens cinzas, para não nos privar de vê-lo, ainda que por minutinhos, o seu reflexo dourado sob a baía da Urca, esquentando com o seu ar preguiçoso os desejos de quem divide a cerveja e as conversas, por só não ver o tempo existir, mas vê-lo subir, mostrando-se como uma imagem única de força e de trégua dos dias tão extenuantes das obrigações.
Caminhar ainda, ver o tempo e não vê-lo ou ao menos tentar mensurar o poder de sua força; testemunhar o meio-a-meio do antigo Cassino sob o pé do morro; uma parte sua traz tristeza com as paredes quase caindo, a outra traz dúvida sobre o futuro, sobre a saúde da história da vila, percebida com a sola dos pés, com os rasteiros chinelos que desfilam, sob a sola, os restos dos grãos dos asfaltos paulistanos. No novo e no velho daquela sobriedade de chão que viu cabos erguidos para se passear lá por cima, para poder ver a cidade como não se pode ver de lugar nenhum. É preferível, por ora, a caminhada de apertos pela Cláudio Coutinho; quando se entra lá o céu é todo luz, já quando se sai o azul é penumbra da noite, como um balancete, o desvio da luz que vem da lua. Sobram os postes de luz amarela que iluminam a praça do anjo sem asas, os prédios históricos, e as cabeças cansadas e felizes.
Outra mini-caminhada, agora pela Avenida Pasteur: a avenida que abre o caminho para os outros cantos. Não cogita-se outro caminhar, senão pegar o ônibus, comer e descansar. Estar no Rio, num episódio assim, é estar e não estar, é sobre ser e sobre viver as coisas que a tenebrosa calma da rotina nos turva.
Subir lá e descer cá, do ônibus, e sentir a Barata Ribeiro novamente e, preferir, como bons paulistas do Brasil, uma nova pizza sem catchup do Rio. Feito isso, o sono ganha abrigo forte na cabeça e no corpo que se alimenta outra vez de mais um dia possível, que será ao modo de rascunhar o futuro com o pensamento; seja com o Sol a tracejar outra epopéia de pernas, seja com as Nuvens a desenvolver a sua contenda de águas arredias sobre as cabeças dos revoltosos de São Paulo, que teimam por dar marca à presença da garoa fina e linda do Rio de Janeiro.
A despedida é charmosa, é sob lágrimas, quando há satisfação no ar que se expele pelas narinas; desde a alegria de ver os queridos, embebidos de toda alegria da tarde de conversa e de morango com chocolate. É de tudo. Do anjinho nascido há pouco, e tão sorriso: é quase só o seu jeito. Na despedida, no caminho da volta, vê-se tudo numa outra perspectiva, das dos saudosos que arrefeceram o espírito pela calma da calamidade dos dias angustiosos. Os dias foram e ainda são, desde dentro do táxi, muito bonitos; a ver de longinho o Cristo lá em cima lá de baixo, agora visto iluminado com a luz dos homens para percebê-lo na luz do divino.
O táxi corta as ruas e a estrada dos nossos juízos, atestando uma saudade bruta e sadia.
Fica de tudo, e de umas coisas mais, um abraço às esquinas onde repousa parte de nossos amores, testemunhadas pelas fotografias e pelas palavras urdidas de nostalgia. Tudo fica, ainda que só por dias, por horas; nem por manjares, só por acepipes.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Matéria do Sonho

Em seu peito enovela dúzia de amores vividos. Num simples divago, passou a repensar. Eram tempos tão justos e mal aproximados da lembrança; medir o presente que virá a ser passado. Por quê? Porque este repassar do tempo lhe parecia mesmo justo e que, em algo, lhe enganava de viés; mesmo assim: justos. Tal como aquele aperto que comove o coração, e depois dissipa-se, como a água em poça, daquelas chuvas de verão. Era amor de primavera. A primavera se estendeu pela vida. Sinhá Linda. Nhô Formoso. Para quê os nomes, se os predicados que se apresentam os apresentam melhor do que os nomes, estes atestados feitos para que possamos saber (será?) quem somos?
Uma aturdida sensação "de nada", vazio constante, o fez de jeito para um susto maior, que até grito houve. "Senhor!" Eram as lembranças das sensações já não sentidas e que fluviou pelos olhos com uma fé sem certeza de que o futuro não era digno de temor: nem existido havia. Era algo de só pensamento e um ungüento pra bem, de vez em sempre. Toda a medida do sacríficio era uma dúvida do exercício da sinceridade - mais patrocínio de noites sem sono e sem um quente corpo pra esquentar os pés, lá embaixo das cobertas, invisíveis-brancos de tão gelados.
A solidez de seu rumo era um caminho de pedra cascalhada; louvava a força que ainda se esticava nos músculos, até à face, para um sorrateiro sorriso. Mas tão inibido, que mesmo o ar, que forçosamente lhe enchia os pulmões, naquelas noites frias, intuía ser matéria de respiro por ali, e vida. "Todos somos" - pensava - "um exercício de memória e um teste para o infinito pendente".
Era a justa condição de que lhe falavam; mas, o corpo riste, inseguro, incomparável em dor espera o tino da passagem da luz-ponte; da matéria vibrada em desencontro de se parecer mais umas dessas enunciações e ritos de natural e terna "simpleza".
"Ah, coraçõezinhos!", dizia pra si, "Coraçõezinhos quebrados, mas nunca, quando, dá dó, fabricar dor e arrependimento: não foi pra isso que fui criado". Mais um tempo, se empertiga a pronunciar - "Se rechaça a idéia, mas nunca o amor. Este segundo, como a mãe ensinou, era pra respeito, e merecia altar na louvação dos sentimentos". Ruma sempre pra verdade, como se fosse bê-a-bá dos pequenos. "As formosuras não são tão formosas quanto as formas de nosso querer bem a alguém".
Recitava: "Fé advém de cruz-credo, pra salvar-se da mágoa ardida, da idéia que aturde a fronte." Hoje não é ontem e amanhã, talvez, (sic) "nem vem". "Mas quem espera, espera, mesmo sabendo que nem vem."
Queria era um açucarzinho para adoçar a ponta da língua e as idéias que lhe andam bem temperadas, para, quem sabe, o ajudasse a resolver estes problemas de esperança. Mas não é todo arraso: a nutrição dos pequenos vai em popa.
"Quebramos tanto a cara querendo coisa que nunca será nossa, que sofrejamos na terra por essa infelicidade previsível, fraca, mas que nos perece". Descansa de suas conclusões, parece mais maduro sobre a plenitude e o descenso que a vida lhe trouxe; a realidade já não lhe parecia tão amarga, o destino das coisas, que se entende pelo seu, já parecia retumbada pela serenidade religiosa que reverberava em seus ossos, rigorosos e frágeis.
Ainda busca certa vitamina nos abraços que recebe, no reluzir das retinas, sob a tutela das lágrimas contidas, dos amigos que o alegra e traz um fulgor repentino da juventude e do amor. "Como me regenero nesses olhos de bem, de lembrança..." Parava, parecia soluçar, mas era o tempo e a verdade que lhe cingiam limites. Nhô Formoso era de Sinhá Linda; Sinhá Linda era de Jesus, era o que falava, mas a voz e o olhar, que acalentava os pequenos (já senhores e senhoras), dividia muitos e derretia a força que lhes torquiam; as mãos nos rostos e a fuga dos olhos nas mãos denunciavam a verdade que não queriam. Os pequenos eram grandes, mas Nhô Formoso só tivera "pequenos" por toda a vida. "É de fraqueza que vivemos, de beleza que nos motivamos, desculpem, minha gente, se não sobra cama e descanso no meio dessa bagunça das nossas conclusões, eu sei que assim não dormimos bem e ficamos fracotes, e na bagunça nem se encontra gente, vê só bagunça, mais nada".
Uma outra noite, sob a luz tênue do lampião num canto do quarto, repousa com o tempo contado; sonha. E é ali, nos sonhos, onde mais se enriquece. Foge a figura das sombras das noites nos olhos, não há desespero, e a paisagem que lhe aparece para caminhar é juvenil e cálida, como deve ser o "beijo de Jesus, quando encontrá-lo". Nada turba o teu corpo, quase desaparecido sob a manta listada que já esquentou também Sinhá Linda; sob a manta os minutos estão alçados à eternidade tão desconhecida, comentada pelo mundo de Nhô Formoso... Nessas divagações dessa vida, como podemos ser tão naturais, nestes pulsares espaçados que vão lhe trazer a redenção que jamais vida qualquer poderá conceder: "A paz absoluta, meus senhores".
"A água abençoa também os perdidos de sono ou os desencontrados dessa vida".
Mais um dia, outras horas de se saber que a realidade é precisamente inversa aos nossos desejos, e de que os nossos desejos são apenas misérias do nosso corpo. O que enriquece, para Nhô Formoso, são os verdadeiros sonhos, ainda que estes não passem de desenhos pintados no sono durante o repouso; os sonhos são maiores e neles é que se deve apostar. Dizia sempre, "Esqueçam os desejos, alimentem os sonhos". "Garotada, vocês não sabem de nada, por isso mesmo podem sorrir".
Há animosidade do sinal da nova manhã, o sol começa, filtra pelas frestas; mas é um "bom-dia" tão fino, como uma linha de algodão, que passa despercebida pelos olhos semi-cerrados, já despertos, de Nhô Formoso. Algo, em si, além da boa criança que sempre foi, faz o tinir para um sorriso que vai lá acordar os pequenos. Algo jovem, belo e indescritível; risinhos sonoros ocupam o vago tão enorme do quarto. Nem mais se cabe, Nhô Formoso: é criança. Vê de longe a penteadeira, deitado, sem o encosto de travesseiros que costumavam colocar ali todas as manhãs, logo que acordava, aquilo, às vezes, era um asco. Sobre a penteadeira havia uma foto de Sinhá, ali tão linda. Por hoje, parecia que respeitariam a sua intimidade e o deixariam só, compartilhar consigo aquela sensação de suficiência, e repetia pra si: "Que dure".
Passou pelo coração a fotografia do amor de primavera, e o sentimento de que se entendia agora com a natureza. Só, mas não em isolamento, calculou o gozo da hora; um tão querer desembocava num ganho infinito, num encher-se de amor. O perímeo de seus olhos amarelos, gordos e já sem o brilho da criança daquela manhã, bloqueavam a luz do mundo, que não denotava tanta esperança quanto "os sonhos, meus queridos, nestes tenho fé". Os olhos já não refletiam luz, nem percepção: bloqueados para a vida daquele mundo.
Nhô Formoso tinha já os sentidos todos arrefecidos e recebia o beijo de Jesus, enlaçado nos braços perfumados de Sinhá Linda, quando o mais novo dos pequenos entrou no quarto e viu que o pai era, mais do que nunca, só encantamento. Só pôde chorar e rir-se devagarinho, como sentindo a dor pungente da tristeza que sublimava alegria, pois entendia que o pai transformara-se em SONHO.