quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

All About Bette

Fasten your seat belts.

It's going to be a bumpy night.



Mais alguma coisa sobre Eve?


Sobre Margo Channing?

Cínicos. Ágeis. Perfeitos. À medida.

Um dos melhores filmes. Uma das melhores atrizes. Uns dos melhores olhos.

Mais alguma coisa sobre Eve?

Apenas sobre Margo. Sim. Margo.

Melhor, Bette.

Só Bette.



It is my last wish to be buried sitting up.


La Jetée (1961)

Cartaz original de La Jetée

O cinema é movimento? 'Sim' - você naturalmente responderá. Eu, simples apreciador da arte da imagem, da palavra, da conjugação das duas - vivas - direi: 'é, mas nem sempre.' Algumas fotografias exemplificam isso ou, melhor, alguns fotógrafos, como Steve McCurry, Jean Baptiste-Mondino, Bill Brand, Cartier-Bresson, entre outros mestres da imagem, que nos mostram que a imagem capturada pode ser muito mais avassaladora do que as imagens contínuas - iniciadas com o cinematógrafo, em 13.2.1895, pelos irmãos Lumiére - e popularizadas pelos longas-metragens de Hollywood titanicamente espalhados e propagandeados pelo mundo. Está certo, aqui citei gênios da fotografia, e não do cinema, e o que estes têm a ver com a pergunta que inicia o post?, e, eu, novamente, direi: 'tudo!'

O movimento é cinema, e o cinema não é só movimento, mas, sim, essencialmente, imagem, não, necessariamente, palavra, haja visto que o cinema, nos seus primórdios, era silencioso, e não menos majestoso e fantástico. Mas, nesta arte, que denominam como a sétima, o fantástico é quase, equanimamente, experimental. Você deve imaginar que quem escreve este post é um tremendo de um enrolão, esbanjando no uso das vírgulas, das pausas, não permitindo a fruidez do texto, não permitindo que se responda a questão inicial, sobre o movimento no cinema e na palavra, da intrínseca relação entre os dois.


Houve um cineasta francês que acreditou que o cinema era imagem, muitas, juntas, inteiras, mas paradas, e acreditou tanto nisso. As pausas, as quebras de sequências (ou falta delas), no texto, servem de apresentação ou de demonstração, via verbo, para os fantásticos 27 minutos de
obra do cineasta Chris Marker, de 1961, a experimental La Jetée.

Filme de narração objetiva, econômica, e feito essencialmente de fotografias P&B. Fotografias. Onde há uma única cena de movimento em todo o filme - e talvez o seu ápice - a cena do despertar do sono, da respiração e dos olhos entreabrindo-se, de uma bela e misteriosa mulher (Hélène Chatelain). O protagonista, através de uma viagem ao passado, tenta entender o seu elo com aquela mulher, e vai em busca da compreensão e dos motivos que provocaram a guerra nuclear que culminou no fim de quase toda a humanidade. Voltar ao passado e descobrir o início e o fim de tudo, este é o leitmotiv do filme de Chris Marker. La Jetée serviu de inspiração para Terry Gilliam (Monty Python; Brazil, O filme) produzir o Os doze macacos (1995).

Este photo-roman serve para nos mostrar que belas imagens e belos textos não precisam ser extensos, carregados, muitas vezes, de melodramaticidade vulgar, para fazer com que se alcance e provoque sensações no espectador. Sem cores e sem movimento, e com ruídos estranhos que dão ao filme a aura fria e distante dos filmes de ficção-científica, o filme de Chris Marker, é um bom entrosamento de texto, da narração distante e um tanto perto, com bonitos recortes fotográficos, do primeiro plano ao último.

Em
La Jetée a comoção não atrela-se ao movimento, à animação - estes, no filme, legados somente às essências da vida: o respirar, o abrir dos olhos para um outro dia, que poderá ser apenas um outro, dentre muitos dias, mas, talvez o primeiro, talvez o único. Ou imaginação, mesmo uma lembrança ou apenas um sonho.

É sempre precioso assistir obras como La Jetée, que ensinam, que inventam, que validam a emoção não em sua gratuidade, mas no que ela mesmo nos serve que é apreender experiência das boas e más incursões na vida, do nascimento à morte, como dito anteriormente - do primeiro ao último plano; da primeira à última fotografia; do despertar ao próximo sono; da roda-viva-gigante que é tudo, essencialmente tudo. Tudo, em La Jetée, é um despertar contínuo - do não-movimento - que nos intera das outras cores, já que não existem (aquelas) cores. Reavivar o instante parado no tempo para um novo movimento das coisas que não se movem.


La Jetée - 1961


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac

François Mauriac, em foto de Henri Cartier-Bresson

A experiência diz para ir com calma. Na linguagem pluralista da literatura é preciso ter paciência e muita calma quando se está com um romance em mãos. Frisa-se, não qualquer romance, mas alguns romances. Alguns livros poderão oferecer, sem méritos, a chave da questão que propõem. Outros lhe darão o substrato para que se desenvolva o raciocínio sobre o que está contido nas páginas que irá folhear. Poderia ser apenas mais um bom livro, no princípio, mas que no correr dos olhos sobre as linhas, páginas percebemos estar com uma das melhores realizações da literatura francesa no último século - Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac.

A oportunidade de deparar-se com as páginas de Thérèse Desqueyroux, já, em si, é um feito, pois François Mauriac é um autor que, hoje, passa despercebido pelos jovens aqui no Brasil. Mauriac foi bem lido por aqui, entre as décadas de 40 e 60, quando as suas traduções pipocaram; e foram traduzidos romances, ensaios e poesia deste escritor que foi laureado com o Nobel de literatura em 1952. É digno de nota que a tradução brasileira de Thérèse Desqueyroux é de Carlos Drummond de Andrade, que ainda prefaciou a edição nacional; e o tradutor observa que, como bom conhecedor da matéria, de que é preciso ser muito cuidadoso nesta leitura, já que, pouco a pouco, Mauriac, desenvolve um enredo engendrado em detalhes que poderão parecer desimportantes, mas que serão de grande relevância para capturar a sua atmosfera e, principalmente, delinear as arestas da personagem-título, Teresa. Uma miscelânea de frustração e arrependimento a fará cometer um crime com, ora marido, Eduardo que transforma-se-á na sua maior chaga, dentre tantas que serão apresentadas.

Esta não é uma crítica, nem resenha ou um ensaio sobre a obra, mas apenas a sua apresentação. É bom ler Thérèse Desqueyroux que desafiou os pudicos e o próprio autor - com as suas convicções religiosas esclarecidas e convictas - a rever que a palavra, dependendo de como trabalhada, pode ser mais devastadora que uma gota de veneno.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Sonhei que sonhei

- Sonhei que sonhei, mãe.

- É, filho? Que ótimo.

- É.

...

...

...

- Você não vai dizer nada?

- Precisa dizer alguma coisa?

- Bem, nada, não precisa dizer nada.

- Filho, diga. O que é que você quer que eu diga?

- Não, mãe, nada não.

- Diga...

- Não, mãe. Esquece.

- Esquecer e deixar você encabrunhado?

- Deixa.

- Filho, olha aqui.

- Humpf!

- Estou pedindo, filho, olha aqui.

- Mãe, tô aborrecido. Deixa pra outra hora.

- Filho, estou te pedindo, por favor, olha aqui...

- Fala...

- Por que você ficou aborrecido assim, de repente?

- Nada.

- Diga. Você me disse que sonhou que sonhou. Depois fechou a cara...

- Ah, mãe... Eu pensei que a senhora ia ficar curiosa pra saber o que eu havia sonhado que havia sonhado.

- Desculpe-me, então. Mas é um pouco estranha esta história de 'sonhar que sonhava'. O que isso quer dizer?

- Na verdade, não quer dizer nada. Talvez queira dizer, sim, mas só um pouco.

- O quê?

- Mãe, eu tenho sentido que as pessoas não sonham mais. Sonhar de verdade, sabe?

- Filho, querido, desculpa, mas está difícil de entender o que você está querendo me dizer.

- Bem, como eu posso dizer... Mãe, os meus colegas de escola têm me dito que os pais deles passam pra eles que sonhar é bom, mas que os sonhos devem ter limites...

- Continue...

- E, mãe, isso tem ocorrido várias vezes. Tem alguns colegas que têm medo de fantasiar sobre os desejos deles. Como se não fosse certo, proibido. Eles me dizem que é preciso viver a realidade. Tenho medo de acreditar nisso.

- Mas, filho, você tem medo de acreditar no que os seus amigos pensam, ou você tem medo de pensar como eles?

- É, acho que é isso. Tenho medo de pensar como eles.

- Bom, querido, você sabe bem que eu nunca te proibi de nada que seja bom, principalmente de sonhar.

- Tenho medo, mãe.

- Querido, não entendo o seu medo. Tem mais alguma coisa?

- Mãe, é esse negócio de viver a realidade. Eu sei que é a vida real de todo dia é a que vale de verdade. Tenho medo de que o meu sonho de andar de trem por aqueles países gelados fique só no pensamento... Mas é que eu acho estranho a gente ser proibido de sonhar, de imaginar coisas pensando, sonhando, lendo um livro...

- Filho, você deve sempre sonhar, não pode pensar diferente. Mas não entendi ainda esse negócio de 'sonhar que sonhou'... Me explica?

- Mãe, eu sonhei que sonhei. Eu sonhei que o sonho só era possível num outro sonho, que a gente vivia uma realidade onde já não pudesse sonhar. Vivíamos num mundo onde só existiam duas cores, o laranja e o cinza. As coisas eram estranhas, o mundo era estranho. Fiquei com medo. Será que isso é uma premonição do futuro? Sei lá, tem gente que diz que a gente pode ver o futuro pelo sonho.

- Filho, meu amor, vem cá. Olha para a mamãe. Não tenha medo dos sonhos e nem dos pesadelos. Se os sonhos dizem sobre o futuro eu não sei, mas são os sonhos que nós temos que podem fazer com que sejamos felizes no futuro. Por isso, te digo, não tenha medo dessas coisas. Não se envergonhe do seus sentimentos e desejos, um dia você vai viajar num desses países gelados, vai rolar na neve, mas isso não faz com que você esqueça da realidade que você vive hoje, sem abrir mão de sonhar.

- É mesmo, mãe.

- Então, vai lá pro quintal, vai brincar. Muitas crianças do mundo gostariam de ter este Sol na janela e de sentir o calor dele pra fazer muita coisa, pra se aquecer e brincar.

- O Sol também é bonito, né, mãe? O Sol é bonito igualzinho às montanhas de neve.

- Isso filho, igual às montanhas de neve...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A janta, amor...

Carla sempre se aborrecia com a enrolação de Rui para o jantar. Jantar posto, e era uma nova novela Rui largar a TV, o telejornal, queria se inteirar de tudo. Usava como desculpa o trabalho que lhe ocupava o tempo. Nisso, Carla, cansava-se de alertar Rui. Os chamados de Carla ecoavam no corredor, que ligava a cozinha à sala, sobre a comida que esfriava na mesa.

- Rui, deixa isso. Pôxa, não dá pra ver isso depois? Tem internet. Depois você vai lá e vê tudo que esses caras estão falando aí?

- Tá, tá...

- Ei, vai esfriar...

- Tá bom.

- Tá bom, nada. Vem cá!

- Já vou.

- Ah, tá. Vem e depois pede pra esquentar tudo no micro-ondas. Por acaso, tenho cara de palhaça?

- Não, querida, não tem. Mas que você é engraçada, isso é...

- O quêeee? Desaforento! Eu me esgoleando e você ainda fazendo piada com a minha cara.

- Não querida, eu só disse que você é engraçada.

- Ah, e você quer que eu encare isso como um beijinho no rosto. Me poupa, Rui. Todo dia é a mesma coisa.

- Tá, você tem razão. Todo dia é a mesma coisa. Então vamos fazer diferente.

- Ã...

- Sim. É só você, a partir de amanhã, não me chamar mais durante o jornal, certo?

- Ha ha!

- Adoro quando ri assim.

- Pára, Rui. Você sabe bem que isso não é um riso. Que merda! Caramba, eu fico pensando o dia inteiro no que fazer para o jantar, com carinho, tento inovar, fazer algo diferente, por você, por nós, tentar fazer com que a nossa vida não seja contaminada por esta coisa que chamam de rotina. Tento fazer um agrado, e você nem aí.

- Não é bem assim.

- Como não? Tem dia que você ronca aí no sofá. Emenda jornal no filme e o filme em outro programa, aí vai... Esquece da comida, esquece da cama, esquece de mim...

- Mas...

- Nem 'mas' nem 'menos', Rui! Estou cansada.

- Carla, precisa se revoltar assim? Olha, você está certa. Eu às vezes piso na bola mesmo. Às vezes você me liga lá do seu serviço só pra perguntar o que eu gostaria de comer, daí peço pra você fazer e, dependendo do dia, acabo nem jantando, porque depois bate uma preguiça, um cansaço aqui no sofá, maior do que a fome...

- Que bonito! Ele reconhece. É tão bonitinho...

- Tá, Carlinha, não precisa ironizar.

- Tá, meu poeta, me responde agora, na prática o que muda? Discursinho de que sabe que eu me empenho e tal, mas você faz alguma coisa pra mudar?

- Faço, claro que faço. Todos os dias reconheço pra você que não faço nada pra mudar. Já é alguma coisa...

- Deixa de graça.

- He! He! Tá bom. Vou parar de te encher, meu amor. Desculpa por hoje, e por todos esses dias. Eu prometo não aborrecê-la mais, juro.

- Rui, até quando?

- Até quando o quê, querida?

- Até quando você vai ficar fazendo essas juras ridículas de 'eu faço', 'eu reconheço', 'vamos mudar' e blá blá blá blá blá. Chega, né, Rui!?

- Calma, Carlinha! Eu estou sendo sincero contigo.

Um silêncio reinou por extensos trinta segundos, até que Rui o quebrou com uma pergunta.

- Você sabe o que eu queria agora?

- Não.

- Eu queria te dar um abraço, um beijo. Mas você tem que deixar eu chegar perto de você. Eu fico com medo quando você fica com essa cara...

O sorriso de Carla vibrou pela casa pela primeira vez naquela noite.

- Ah, seu bobo, seu bobo. E eu sou mais boba ainda por gostar de você, amar alguém como você. É só você falar assim para eu me derreter. Ai, às vezes como eu queria ficar com raiva de você, de verdade, pra você ver o que é bom. Mas eu não consigo, não consigo. Você me desmonta com essa cara de cachorro pidão.

- Eu não sou um cachorro pidão. Sou um gatinho pidão.

- Ah, ainda se acha. Posso com uma coisa dessa?

Quase infinitamente num minuto se abraçaram e deram-se um longo beijo. E outros trinta segundos de silêncio se apoderaram da situação até que Carla começasse outra vez:

- Posso te pedir uma coisa?

- Sim, querida.

- É uma coisa pequenininha, juro...

- Tá, Carlinha.

- A janta, amor...

Caminharam, então, juntos, para a ceia mais importante: a ceia de todos os dias.

Como todo casal normal, Carla e Rui precisavam de um frescor de vida, que poderia vir de uma noite de amor, de uma discussão. De lampejos de alegria, ou de contendas de choro. Conheciam o poder do micro-ondas para salvaguardá-los, especialmente Rui, nas noites de jantares nos horários trocados. Sabiam da especialidade que é entenderem-se no razoável da fina pétala brumada, dos dias difíceis adocicados pelo perfume sensível, irrequieto, único do amor.

Haja gostar. Desentendiam-se e amavam e amavam-se.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Os Argentinos 2

Uma das melhores peças da laboriosa invencionice de Cortázar.

Veja no link
Fantomas contra los vampiros multinacionales

Os Argentinos 1

É muito bom tentar entender a marca indestingível de um país

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Tardio

Arrumei a minha estante. Eu tinha uma certa apreensão por mexer nela; há tanto tempo que não mexia neste espaço, e não sabia o que eu poderia encontrar por lá. Sabia que ali guardava mais do que poeira e escritos nunca lidos em voz alta. Ainda havia ali o resto de um tempo que fortificou-se em mim. Estabeleceu alicerces. A minha estante, de algum jeito, transformou-se mais do que somente o lugar onde eu guardo os livros, tornou-se o lugar onde, teimosamente e covardemente, tranquei o meu passado. Temia o que havia entre os volumes. Não resumia-se a restos de lembranças, mas a camadas ulteriores, que alcançam os dias de hoje, do tempo. Temia, portanto, deparar-me com os almaços prensados por aquelas letras que, hoje, poderiam não ter um sentido ou o sentido, ou mesmo sensibilizar a memória. Mas aquelas folhas, que encontrei depois de arrumar a estante, não me deixaram estático, mas com um vazio inerte. Em um deles, não me lembro, há a 'claridade lívida do caçador'. Não me recordo de tanta coisa assim, mas me demoro muito a compreender que quase todo o instante dividido parece ter sido regido pelos escritos e anotações que preenchem muitos dos volumes.

Roubaram um pedaço precioso de mim. Há uma tensão particular ao observar as lombadas daqueles livros, e toda vibração de uma 'morte misteriosa' que emana daquele lugar. Combalido e cansado, tento não alimentar estes argumentos, mas tenho que fazer, por mim, pelo que ainda preciso viver, pelo que preciso morrer. Devo mandar embora os livros, aquela estante. Não em pouco tempo, mas com alguma persistência, em alguns anos, remontarei uma nova estante; um novo compêndio de que precisarei para o que me resta de futuro. Todo minuto encerrado ali fora mal resolvido, mal explicado, mal conversado, mal entendido, mal ouvido. O que poderia supor de um querer de que nada se ouve, se escuta. Um praguejo, uma esconjuração ou um lamúrio sequer. Há infinitas faltas ali. Anedotas que não existiram e sorrisos que nunca burilaram a falta de compreensão do que julgávamos ser uma honesta troca de carinho, uma divisão natural das leis de um provável amor.

Mas tudo era provável. Provavelmente, não faltarão provas, mas os fatos em si. Tudo era possível, mas o que restou foram as impossibilidades com as quais não contávamos. Aquela emanação de equilíbrio acabou por ofuscar-se no primeiro passo de um caranguejo, a caminho de sua toca. Havia uma beleza inconstestavelmente ruída. E não queríamos acreditar. Por que eu não quis acreditar? Até hoje não consigo me responder. Ainda não sei se é por medo, ou por falta de algo que possa me fazer entender o momento fatídico que levou-nos, companheiros, à ruína e, assim, deixar com que cada um estabelecesse a rotina que, hoje, conhecemos bem, deste reerguimento inteiriço tão difícil. Separados por um mundo além do mundo. Éramos tão fortes. Eu era forte. Eu sabia mais do que ninguém de que podia soerguer-me sobre a amargura restante e tentar reerguer-nos, tão destruídos por uma imaturidade ou por uma vaidade jovem, literária. Parte dela esteve guardada na estante. Temi remexer. Temi rememorar e tocar nos papéis que reavivariam os conflitos. Nunca estive preparado. Preferimos o silêncio, perdemos um ao outro. Talvez, com um pouco mais de coragem, pudesse ter dado conta do que estava entre os livros e se estendia até o recalque dos meus pensamentos. O pensamento é 'não podia ter perdido'. Sobraram tantas coisas e não sobraram nada. Apenas papéis. É provável que pra você nem os papéis de seu lado sirvam para algo como servem para rasgar em caos o meu presente que se achava, até há pouco, quase tranquilo. Mas nunca foi tranquilo. Nunca tranquilo porque sabia que tinha uma divida, não paga, inópia. Falávamos, desmedidamente, de sucesso, que sobrou no poema, de E. Dickinson, perdido em meio àqueles livros:


Sucess is counted sweetest
By those who ne'er succeed.
To comprehend a nectar
Requires sorest need.

Not one of all the purple host
Who took the flag to-day
Can tell the definition,
So clear, of victory,

As he, defeated, dying,
On whose forbidden ear
The distant strains of triumph
Break, agonized and clear.


O sucesso escrito para fazer parte daquele poema. Somente ali.

Não consigo desviar os olhos da sala, da estante. Algo muito mais forte parece se apoderar dos meus sentidos, fazendo com que estes concentrem-se ali, naquele cômodo agora tão detestável quanto amável, onde a amei pela primeira vez. Há tanto disso em meio àquelas brochuras, perco as contas. Em síntese, perco-me. Sempre fiquei perdido, pois vivi uma desilusão desnecessária, até mesmo arrogante, funesta. Por não ter querido gostar um pouco mais de mim. A constatação é de uma simplicidade absurda quanto burra. O discernimento ocorre sempre num tempo errado, para que as mágoas não se resolvam com explicações ou com expiações de culpa. Começamos certos, terminamos sem saber os nomes das ruas que nos levariam às nossas casas, estávamos sem casa, ou pelo mínimo não tínhamos mais nada a ponto de inviabilizar dividirmos aquele teto por pelo menos uma noite. Como tudo tornou-se incompreensível e isto só agrega à sintaxe uma conotação expletiva, de toda desnecessidade que são estas palavras redigidas protegidas do sereno que tranquiliza a noite desta vivenda arenosa do ar, que me parece mais sublime mas ainda pesado.


Queria resolver alguns pontos - impossível. Queria safar-me de alguma culpa - inconcebível. Queria talvez recuperar o tempo perdido, mas a convulsão violenta que me atenho para cuspir o enjoo que fora remexer naqueles papéis; enjoo que foram estas palavras aglutinadas sempre no padecer de uma esperança, torna o plano inviável. Palavras indignas, talvez sujas porque sangram alguma dor. Mas toda a benevolência sonhada, e recuperação dos males causados, sofridos, parece repousar no acometimento do tempo que dá de encontro ao que se concebe, até os últimos breves minutos que me permiti sonhar, ser tardio.

Uba

O tempo é curto. Pulando poças, vamos no caminho do capim. Não. Não há capim. Bem, vamos ter de pastar em outro lugar. Lá onde mora o pássaro que assobia. É um lugar simples e singelo, dizem. Bem te vi. Mas percebemos que tiraram os hífens do bem te vi. Tiraram também as grades do fogão. Tiraram o café. Há fome. Não há capim, nos mandaram para o nosso bem para o bem te vi que mal me viu. Quantas poças, quantas conversas, quantos cigarros.

'¿Por qué no te callas?'

Contente-se com esta bucha, já que não há esponja na pia para lavar os copos, os pires de sorvete. 'Que abacaxi!' Dos abacaxis, prefiro o do sorvete. Sorve, sorve, sorve. Tomou? Encheu o seu descanso de macarrão oriental. Viva as misturas! Todas as misturas de comidas improváveis que nos salvam dos perigos da fome, do mau humor. Salve os omeletes! Salve os macarrões improvisados! Salve os miojos com milho e atum. Salvem também os peixes contra a pesca predatória. E as tartarugas...

Corta as unhas. Vista-se. Dispa-se. Vá lá para as águas. Vá lá. O que espera? Quer uma caminhada, te dou uma, te dou duas, te dou três até. 'Quer madrugar para o café? Só se for assim, seus preguiçosos. Aqui não tem boi, nem boiada. Só gente safada.'

'¿Por qué no te callas?'

Tome-lhe sol, tome-lhe cascatas de raios ultravioleta. Cuidado com os UVA e com os UVB. Toma um suco de uva, por que não? Toma outra coca com abelha, vai... Vai fazer bem, bem mal. Testou o humor, hidratou o corpo? A falta de capim não melou ontem nem hoje. Minha mente está tão bem. A sua também.

Vamos chegar em silêncio no bem te vi, não quero que nos vejam. Quantas conversas. Desnecessárias. Pra fazer política. Propaganda.

Como é bom ser leitão à pururuca, falta a maçã na boca. Besuntar-se de FPS 15 - cuidado com o comprimento de onda - temos apenas 150 minutos antes de começar a flambar. Boiei. Virei uma massa besuntada a boiar no mar.

Um beijo aos mosquitos das vermelhidões, sempre presentes. Nunca nos esquecem. Sempre lembram da gente. Das nossas pernas. Mas dessa vez foi que foi que nem foi tão forte. Vermelho pouco até. 'Que cenho, senhor!' O bem te vi nos acolhe mas é um pássaro estranho.

Precisamos pastar para as nossas bandas. Assobiar para o bem te vi. 'Dá tchau'. A gente nem percebeu que era o sete o que tinha a chave da bola oito. Vamos pastar pra lá. Não no capim daqui. Enchuvarou. Molhou. Ensolou. Secou. A gente viveu.

Outra demora, mas o tempo é curto. Um abraço aos peixes, às tartarugas, ao sorvete, e a toda a demora que foi o curto tempo do mundo que a gente conheceu. A gente viveu.

Um abraço aos peixes. E à Uba, das saudades.