quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Vamos marcar a página...

Na noite friazinha, protegia-me com meu blazer e com minha leitura. Recostado ao ponto de ônibus, esperava pelo coletivo que me levaria à minha residência.

Fornia-me pouca sensação de proteção esperar pelo ônibus ali, enquanto lufadinhas frias miravam meu pescoço desprotegido.

Aos poucos, no ponto de ônibus onde só havia eu, começam aproximar-se outras pessoas, cada qual na espera de seu coletivo.

O volume que eu tinha em mãos era A Montanha Mágica, de Thomas Mann, com suas mais de 950 páginas.

Dois rapazes, logo ao meu lado, que papeavam já antes da chegada ao ponto, parece que desenrolavam um papo alegre, típico de véspera de feriado, de quem não precisará acordar cedo no dia seguinte para aqueles desesperos, velados, da cidade grande.

Embora concentrado na leitura, ouvi um deles fazer o comentário:

- Isso é que é gostar de ler.

O outro contra-argumentou:

- É, tem que ler mesmo. Quem não gosta de ler dança...

O do primeiro comentário emendou:

- É mesmo. Mas eu não tenho paciência. Toda vez que pego um livro me dá sono.

O "Isso é que é gostar de ler" era claramente referência a mim, que segurava um volume reconhecidamente grande.

Quando tentei destinar comandos de mais atenção aos ouvidos, para ouvir melhor aquele diálogo, a pouco mais de um metro de onde eu estava, não houve tempo.

Foi o tempo de o letreiro amarelo iluminado despontar lá na esquina e eu perceber que o meu ônibus já chegava, sinalizando iluminando o que era o meu destino.

Entrei. Percebi que os dois rapazes entraram no mesmo ônibus. Continuavam a conversa, alegres e exultantes, mas já falavam sobre outras coisas, que não consegui me ater ou distinguir.

Passei a catraca. Me dirigi ao fundo do ônibus, onde escolhi um lugar ao lado da janela. Ajeitei-me com a mochila, que naquela noite estava quase vazia.

Os dois rapazes sentaram-se mais atrás, a dois bancos do meu.

Conscientemente, naquela noite, a mochila estava carregada de poucos apetrechos. O único livro que eu carregava estava em minhas mãos.

Depois de ajeitar-me, abri o livro e voltei à leitura, brevemente interrompida quando uma menina sentou-se no lugar que sobrara ao meu lado.

Para a minha surpresa, três minutos depois que eu já me concentrara novamente na leitura, um dos rapazes levantou-se e dirigiu-se até mim.

Chegando ao banco onde eu estava, ele estendeu a mão pra mim.

Num instante muito breve, mesmo, pensei que ele queria me cumprimentar, sem saber a razão. Antes, ele me despertou das páginas:

- Moço, tó pra você. É um marcador de páginas lá da onde eu trabalho. Acho que vai ser bom pra você e para o seu livro.

Olhei pra ele. Eu sentado, ele em pé. Me estendendo sua mão com um pequeno marcador de páginas de metal, dourado.

Eu agradeci o gesto e fiquei, ainda um pouco inerte, sem graça. Agradeci novamente. Fiquei por uns bons instantes olhando para aquele marcador.

Era realmente bonito o marcador, mas também o gesto do rapaz. O marcador era retangular, de proximadamente 5x3 cm.

No marcador havia o logo de uma empresa de engenharia, possivelmente onde o rapaz trabalhava.

Parei um pouco pra pensar. Voltei-me para o livro.

Tudo muito simples. Um instante para marcar a noite, os dias.

Um bonito marcador de página, que não só marca páginas.

Mas vamos marcar a página...

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A Triste ou Feliz Condição do Menino-Olho

O Menino-Olho não se vê. É o próprio olho, e não enxerga a si. Tem um vislumbre absurdo do mundo. O que lhe rodeia é vibrante, todas as cores lhe parecem mais intensas. As paixões, vistas de longe, mesmo assim, a ele se mostram dilacerantes. Não a sua paixão, mas as dos outros. Ele não se apaixona. Vive de olhar, observar. Até que se sucederia bom empregar algumas horas e ofícios para acudir, se tivesse, seus outros sentimentos, com uma menina que pudesse olhá-lo, com aquela mesma força com que ele olhava o mundo. Mas não dava. Não era maldade ou má-vontade. Não dava. Mas o Menino-Olho, ainda, se prazia com aquela sua vida. E como.

Todos os olhares eram para ele. Para ele, os trezentos e sessenta graus eram pouco. Queria divisar os seus sentidos. Partilhá-los um pouco com o ouvir de uma boa música que fosse; com o tatear de uma boa pelúcia que tivesse; com o provar de uma boa iguaria que lhe prouvesse; com o aspirar de um suave perfume que lhe coubesse. Não havia cabimento total para tantas sensações. A visão lhe ocupava boa parte do tempo de sua vida e Ouvir, Provar, Tatear e Cheirar eram sentidos de luxo, que para todos os outros eram de extrema necessidade. Segundo sua natureza, a ele bastava enxergar. Ver o mundo. Vigiar todas as coisas. Observar o que os olhos comuns e os menos normais podiam almejar chegar. A rotina do Menino-Olho era enxergar as diferenças com acuidade, as semelhanças com temperança. Mas tudo, bem regado, com um olhar de esperança.

O Menino-Olho, em um de seus relatos, lembrava que via sangues à tantas distâncias, tantas terras dali. Via tantas festas, não ouvia o que festejavam. Mas via que, por algo, brindavam. Essa vida de tantos olhares e tantas óticas divididas por tantas fronteiras delimitadas por estreitos, lagos, estradas, oceanos. Cabia ao Menino-Olho entendê-las só com o olhar, ainda que não lhe soasse familiar as línguas ditas, as canções entoadas naquelas cerimônias, umas de alegria, outras de tristeza.

Quantas brigadas, quantos chefes, quantas crianças, quantas pessoas, enormes, críveis ou não, podia se ver de longe pelo Menino-Olho. Não se sabia se não lhe cansava aquela sua natureza. O Menino-Olho podia vagar, viver de ver, olhar todas as coisas, mas necessitava de um instante, para acudir outros sentimentos que não o da visão. Todos se indagavam, menos o próprio Menino-Olho que mal dormia para não desligar-se daquele ofício que julgavam cansativo, que não haveria proteína de lágrima que resolvesse a sugerida escassez de energia. O Menino-Olho irrigava-se já com tantas lágrimas. Outros burburinhos surgiam, todos se perguntando se aquelas eram lágrimas sofríveis ou de felicidade. Como seria bom saber mais sobre aquele menino, dar-lhe melhor destino; não renegar-lhe apenas a fortuna de ver e não viver.

O Menino-Olho cria? Não se sabe. Sabe-se somente que via. Nem se se dividia crença com São Tomé. Traziam-lhe tantas músicas bonitas, do mundo; compravam-lhe tantas frutas de sabores espetaculares; cediam-lhe tantas texturas mágicas; transportavam-lhe aromas divinos. Tudo com a esperança de que se ocupasse, sim, com outras tarefas que não fosse o "ver".

O Menino-Olho não entendia nada daquilo, e lhes direcionava aquele olhar de ternura e de suavidade. Os acarinhava com o olhar. A todos restavam lágrimas desobedientes quando lutavam por um sentimento de esperança, quando esta já era findada. O Menino-Olho enxergava bem, e vivia tudo como outra benção ou oferenda de cores. Todos lhe desejavam mais do que cores, mas amores; muito além de luz e claridade; mas paixões diversas daquelas que mexem e remexem nos corações antigos, novos, perceptivos, brutos... todos os corações da boa matéria.

"Acudam o Menino-Olho! Façam-no muito mais do que só ver!" Os discursos imperativos eram esses, mas nada mudava muito. O Menino-Olho enxergava cada dia mais intensamente os instantes de nascimento do dia. Os instantes da vésper até aquela hora que a lua chega no cume do céu. Quando, depois, volta a descer pra voltar a dar lugar ao sol. Ou seja, o Menino-Olho enxergava tudo e todos, todo o tempo do mundo. Para todos, isso não era bom. Ele tinha que ter algo que lhe serenasse o espírito e lhe trouxesse outras sensações. Não podia se pensar em vida longa para um indivíduo que vive apenas de um dos sentidos. Mesmo os cegos, ainda que não vejam, vivem dos outros sentidos com todo o poderio que o talento os permite. Superestima os sentidos que possuem. Com os surdos não é diferente. Valorizam o enxergar. E os mudos, para os quais todo gesto é uma dádiva, a palavra mais bonita não falada, não escrita, nem sonorizada, só gesticulada. Poesia sem verbo.

Em todos os círculos discutia-se a condição do Menino-Olho. Se era humano alguém viver do enxergar e esquecer de todos outros movimentos de prazeres feitos para desvendar a vida. O Menino-Olho é um daqueles que precisam de cura, de ajuda. "Não é possível! Ele não fecha o olho..." Todos os raciocínios, todas as ciências despertadas para enveredar pela vida do menino, do Menino-Olho, que só enxergava.

A verdade das mais verdadeiras era aquela de que todos um pouco já sabiam, mas renegavam, talvez por instinto, ou mesmo por ignorância de não entender sobre a metafísica da vida. Discutiu-se muito sobre o Menino-Olho, até que decidiram que deixasse que a natureza lhe encaminhasse pelo caminho do olhar, pois, realmente, já não havia nada que pudessem fazer. O problema maior residia mesmo aí. Falaram, ouviram, agarraram e sentiram todos os perfumes. Aspiraram as maiores e melhores sensações para o Menino-Olho à busca de uma cura para o que julgavam ser doença. Tsc, tsc. Faltou-se enxergar com olhos reais quem era verdadeiramente o Menino-Olho. Diferente, no início, poderia assustar. Mas o Menino-Olho era muito são; nunca apiedou-se de si. Ria infinito nas manhãs. Nunca entristecera ninguém, e só dirigia olhares benevolentes aos outros, desde o início...

Foi então que perceberam que não havia doença naquele menino. Aliás, se houvesse, a doença não era dele, mas, sim, dos outros olhos que não o enxergavam bem. O Menino-Olho vivia bem com sua particularidade... A doença fora diagnosticada nos olhares que vinham dos olhos que não eram os do Menino-Olho. Percebeu-se, depois, que o entendimento melhor do universo particular do Menino-Olho conferia-lhe paz; o respeitavam mais, como um de todos. Entenderam o quanto as diferenças se espalham e migram, e que não há como habitar no social sem cada um com o seu jeito de ser: os seres são tão díspares. Outros reivindicariam o direito de respeito também: suas diferenças. Enfim.

Não enxergavam o Menino-Olho como se deveria. E o Menino-Olho, feliz, consigo não enxergara, em nenhum momento, as coisas com olhares de desesperança com os olhares que direcionavam a ele.

Mas tudo já é de um outro tempo, e as maneiras se encaminham melhor agora, com o entendimento das diferenças, para mais alívio.

Uma questão de percepção, muito além do enxergar.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Aurora

Entre montanhas amarelas e minas cor-de-abóbora, havia um pasto verde onde se ouvia o desmanchar de um gargalho num pic-nic. Agora, lá vai Aurora para o sul. Ouvir outro som. Ouvir o machado lascar a madeira. As farpas, sem querer, ferroarem as mãos. Aurora não é só. É muitas. Manhã, noite.

Aurora quer brincar. Quer estabelecer o céu no chão. Carpir amanheceres. Uma leitura de feituras. Aurora não é só:

- Não caso o descaso, agora.

Almofadas verdes, camas azuis, chãos marrons, paredes cremes, cortinas vinhas. O cubo alegre fechado de Aurora. Tinia um zumbido de música. Lá, distante. A crença de Aurora era relevante e revela-se, assim:

- O desamor me fez amor, sempre.

Levanta-se pra zunir. Tantos traços coloridos na televisão de Aurora. Os noticiários e o que não é real. Sonhos ainda não-reais tão leais à cabeça do sonhador.

- Minha cabeça é um sono de estrela.

O que Aurora queria dizer? Tão simples:

- Deito na areia pra sentir o abraço do mundo, a Terra me alcançar e me largar.

Aurora faz alguns tratados sobre líquens de pedras escorregadias, de quintais úmidos. Ou sobre cantos onde o sol não chega. Frestinhas dos ângulos retos, das paredes com os chãos.

Mas Aurora sabe que há tantos outros espécimes, outros fungos, bolores que precisariam mais de um alcance do sol de seus tratados. Do sol do norte de verdejar testas, estúrdios desmantelados corações. Aurora esboça em tantos papéis, em tantas matemáticas, em alguns assovios. Era pra lembrar tudo e todos de que do dia branco sobrava a noite que azulava a janela e os olhos, pra dentro, de Aurora.

- Tintei a memória de fósforo. Ascendi e descendi.

Um silêncio branqueava.

- Quero lambujamor.

Vesparam rosa as idéias imitadas de Aurora. Era original.

Eram meias-noites. As narrações de Aurora sobre o dia claro e a noite escura era o sândalo dos poetas. O suspiro das árvores e o fôlego dos machados. A cantiga dos verdes, a melodia dos azuis. Dos verdes e dos azuis. Das praias, das frias e das vermelhas. Nada e nenhuma história se acaba. Não acaba. Zum.

Uns carros lá fora azucrinavam as ruas; umas ruas tremiam casas; umas casas destelhavam-se com os ventos rudes... Era a sinfonia da Aurora. Nenhum pássaro cantava.

Estórias criadas e adotadas por Aurora. Sem pestanejo.

Ninguém cansou, mas todos dormiram.

Pudera. Findada a madrugada, não era Aurora quem se despedia, mas, sim, quem chegava.

sábado, 1 de novembro de 2008

Calor de aluvião

Chov´oje e pulmão chia e chibata e pata na costa, calor de aluvião. Como quente está, como donde não se vê, pra cá, menos melhor e visto. Mas não goteja, e quando, é pouco. Está sino. Nhor de jorge, de menino, de prego e carpino, de madeira de fé. Tão quente menos dói até, quando é esperança molhada que desce do céu.

Chov´oje, chia no coração e tanta querência de saudade de destino, tudo alento, menos certo, alento em nósinhora, que coisa boa se coa num filtro de comequié. É, só certo, alívio, justino, certinho de que se chia menos quando esperança molha mais, então traz. Então vai, comigo de esbanjo, de nhor pelejo, que nem vejo, cabruco, vejo... qui vejo só, tão só.

Chia menos com mais qualquer. Se é de vão que se faz verdade que me queira o mundo de menino que me guarda em travesseiro. Se eiro, noveleiro, só chov´oje pra nós não chiar de não se armar de revrolvim, chiado minguado de não amado só.

Texto escrito em meados de 2007, num informal diálogo por mensagem eletrônica no trabalho, para o meu colega Rafael Castori, numa tarde muito quente, em que esperávamos chuva e um alívo naqueles dias muito quentes.