sábado, 15 de maio de 2010

Tarde de Maio

Me pergunto sobre tudo, sobre o mundo, sobre as coisas e pessoas que me cercam. Há algo de não finito e de tão bom em tudo, que não me faz ter a ideia de que sou perecível. Tenho um prazo de validade. Vou até um instante. Depois, haverá outros instantes que não serão válidos para mim; que já não serão demais para mim. Eu serei uma memória, ou duas memórias, ou infinitas memórias - todas alimentadas com o instante que estive aqui neste plano sublime, ordinário e maravilhoso.

Se tudo é então finitude, que eu me acabe de uma vez, transformando-me em coisas de bem, como em palavra ou em espelho de uma canção.

E como nada é tão estupendo que possa viver para sempre, é tão inalcançável como beijar a própria nuca, entendo que eu sou mais um que lê, e relativiza leituras, de contos, novelas e poesias. Em um minuto para sempre, nesta tarde de maio.

Marcelo

***


Tarde de maio


Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh´alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência de resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nunca houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

Carlos Drummond de Andrade

("Tarde de Maio" encontra-se na segunda parte (Notícias Amorosas) de Claro Enigma, de 1951)

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Arranjos de Ismael

Uma noite que se estendeu além das horas que cabiam ao sono, que o corpo de Ismael devia à sua mente. Sábado de Aleluia, ou Sábado Santo, precisa se aprontar para a Ressurreição, não à Insurgência dos que não têm fé. Ele tem fé. Tem a tarefa de desarmar um pelotão e outros homens que não acreditam nele e no que pode e no que já elaborou, já fez.
Alguma incoerência, meus senhores? Eu não sei. E não partilho nada demais de Ismael porque temo, desconfio, não sei o que pode me acontecer se cada vez mais externar as coisas, os casos, os acontecimentos, e a ausência de tantas outras que compõem este indivíduo.
Mas é Sábado Santo, ensaio minha Vigília Pascal, que não é senão a de mim mesmo.
Ismael em prece: O Senhor está no meio de nós!
E o seu Senhor é o avante não mais forte do que o seu coração, guiamento da voz seca encrostada na garganta, que pede uma amizade, uma bondade e o entendimento do amor.