domingo, 10 de junho de 2007

Sebo, Pizza & Cola - II

O tédio pode ser amigo ou inimigo, como já disse, dependendo da forma com que o encara e contorna as situações por este determinadas... Nestes dias, após às seis, fim de expediente, saio e vejo o clarão alaranjado emanado dos postes que já contornam a Paulista e como esta luz laranja desenha uma sinuosa e delicada curva da avenida quando vista dali, da altura da Haddock. A partir dali, me proponho a um cardápio de opções de desvulgarização do meu ócio, onde incluo três destinos: música, cinema e boteco, e congêneres para apreciação vespertina.
Mas, de fato, não buscava nenhum destes; no cinema já cheguei a uma razoável média de cinco sessões semanais em período de inexistência de aulas. Estava mesmo pouco a fim de acrescentar às estatísticas ou engordar tais números; coisa mais sem graça engordar números, talvez queira engordar a mim mesmo, é mais conveniente e saboroso. Talvez eu seja o único a encontrar conveniência na alta e demasiada ingestão de alimentos para tornar-se obeso, tal como uma pata. É sabido que admiro patas obesas. Bem, cogitei então a música, lembrei de de um show que começaria em poucas horas na Vila Mariana, daqueles de banquinho e violão, e o meu cérebro não denotou qualquer esforço para locomoção até o Sesc Vila Mariana e assistir a apresentação de um sueco-portenho que por lá estava com o seu violão e banquinho. Sobrou o boteco, mas o boteco, ao menos para mim, é algo bacaníssimo quando acompanhado por botequeiros autênticos, profissionais. Imaginou um não-botequeiro ou botequeiro amador dirigindo-se sozinho sem a companhia de alguém experiente para o orientá-lo sobre as maneiras de comportamento e, principalmente, sobre os assuntos e debates que devem ou não serem desfiados neste ambiente. Sozinho seria impossível desenvolver assunto ou conversa lá; se eu incluísse a possibilidade de um monólogo em voz alta logo ali, sim, com a razão de não ter razão e ser reconhecido como um sem-razão, assim, criando uma má impressão nos originais botequeiros residentes no recinto. O boteco é um espaço propício para muitas coisas, das triviais às mais originais, seria um lugar interessante, mas a verdade é que eu não sou botequeiro; a bebida mais perigosa de meu sucinto cardápio líquido é o café, já me alertaram das conseqüências da ingestão demasiada de cafeína, mas até mesmo o café não costumo tomá-lo puro: mistura-se a este um leitinho e quando um creminho, então é feita uma pessoa feliz.
Na noite anterior já desfilei os meus olhos por prateleiras de livros lidos, numa procura não tão feliz de um estoque de palavras; de que adianta encontrar um destes se não se pode levá-lo? Mas, passadas já algumas horas, isso já não era distúrbio. Já não pensava na minha guarnição de russos, já lembrava de que sentia a necessidade de saciar-me de outra coisa, ainda não muito bem-definida. Agora cogitei usar-me da tradicional erva portenha, o mate, e misturá-lo a alguma fruta tropical, amazônica, de preferência, e fazê-lo de algo que tem me feito até mais feliz do que a cafeína misturada a lactose com uma dose de creminho. Acontece que tenho bebido muito mate ultimamente, sabe... Nas suas mais variadas misturas que vai do leite e limão às frutas vermelhas mergulhadas em leite condensado. Enjooooa.
Sobrava-me muito pouco ou pouco de muito, conforme criatividade e imaginação, estava eu encurralado por este tédio que deixava-me assim, então relapso quanto a resolução ou estabelecer uma forma de entretenimento simples ali, numa noite que prometia e não cumpria? Peguei o meu Saramago da bolsa, passei a lê-lo, deixaria a leitura para uma outra hora, outro dia, outro lugar, mas as possibilidades de desventuras de minha pessoa a algo que representasse uma forma sincera de fazer as horas passarem e chegarem ao destino inevitável que é o passar do tempo e das horas que são inevitáveis, findavam em pedacinhos. Encostei na muretinha em frente à galeria dois mil, ao lado do Conjunto Nacional. Estou numa muretinha à cinqüenta metros do edifício onde trabalho, pensei, passaram-se horas e o resultado destes pensamentos não me locomoveram se quer cem metros do ponto de partida que parecia ser mesmo o ponto de chegada, ou seja, nada.
Os meus olhos já estavam distraídos sobre a página cento e doze do Saramago amigo que carregava em minha bolsa há uns dias, quando necessidades fisiológicas tal como a necessidade de alimentar-me, já não de prazeres, mas de comida mesmo, começaram a incomodar, o que antes era apenas uma possibilidade apenas, fazer levar o tempo, agora era necessidade. Devia largar a muretinha e me afundar num mate quente? Afinal, estava frio pacas, e não tinha muita imaginação nem mesmo para saber o que poderia preencher o meu estômago, o mate não fosse talvez uma boa opção, ou uma opção dentre outras inexistentes. Logo, veio à mente a imagem do líquido preto, criminoso e que me causava um dos maiores prazeres, sentí-lo distribuir todo o seu gás por goela abaixo e dar-me aquele prazer particular, como relacionado à masturbar-se: uma busca de um prazer, ainda que solitário e egoísta, frenético, compulsivo.
No caminho pós-mureta, decidi parar de pensar sobre qualquer coisa, e passar a agir com menos razão, mais por instintos e necessidades; claro, arroladas estas questões de razão ou da falta dela, nós, seres humanos, cogitamos sexo em qualquer possibilidade e localidade; Mas é bem certo que a minha desracionabilidade é mais aparente do qualquer coisa, portanto não correria como um avirginado pela Augusta com o intuito de saciar minha outra necessidade fisiológica bem sabida, bem desenvolvida, mas bem contida. Na Paulista mesmo, encontrei-me com a bestial bebida fulgurante de gás e cola acompanhada de massa acobertada de queijo, orégano, tomate, ah, que prazer destoador e tão simples e corriqueiro desta metrópole. Nada tão bestial que gozar a fome e vontades com pizza e coca-cola, para uma noite que prometia um passeio pelos lagos e jardins do Taj Mahal, descansar-se sob as abóbodas desenhadas por um Miguel Ângelo, pelas alegrias de peregrinar pelos campos celtas da Irlanda, pelos empreendimentos iluminadores de uma Broadway ou de soltar um grito na London Eye, perceber que todo ele ressoou pelo Tâmisa, noite que prometia aventura sob as selvas e matas deste meu país desconhecido, teu verde, teu jeito, teu ar, teu tudo que alimenta a mim e todos os brasileirinhos que dormem, perdem e vencem sobre o teu solo. A noite prometia tudo, mas por uma infelicidade ou falta de sorte ou imaginação, acabou-se com pizza e coca-cola. Sem filme, sem música, sem boteco, sem aventuras, apenas pizza e coca-cola. Fome e sede saciados, vejo que faço parte do time dos que deixam tudo acabar em pizza, alimento a mim e um ditado popular, encho-me de coca-cola, de gás, de trivialidade e de esperança...
Fico feliz, caminho até as galerias do metrô e desço.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Sebo, Pizza & Cola

Um tédio indesejável e adorável tem me apresentado todas as noites pontualmente às dezoito horas. Sempre vem à minha cabeça, O que fazer? Caminhar? Primeiramente, para a caminhada é preciso um caminho - não tenho caminhos - escolho a pesquisa de outras possibilidades mais gratas, menos árduas do que a busca de caminho que possibilite uma caminhada para espantar um tédio que se apresenta invariavelmente às seis da tarde; coincidência inevitável ou não com o horário do fim do expediente?
As aulas na faculdade não têm existido há muito, este tipo de inexistência resulta em noites vagas. Extinção de aulas fomenta magníficos e assassinos na busca de um ofício e de uma serventia. Vago por aí. O tédio é indesejável à medida do tamanho em que se vê encurralado por ele e deixa-o dominá-lo; adorável na mesma proporção em que o teu singelo espírito desencanta e descobre a estradinha de ladrilhos amarelos para dissipar todo o seu ócio e a força vital que te sujeita aos prazeres, dos mais banais aos sofisticados que sua cabecinha e seu corpozinho necessitam que sejam devidamente saciados.
Terça-feira, cinco de junho de dois mil e sete - um dia de iluminações; melhor, uma noite de iluminações, onde procurava por uma iluminação que preenchesse a minha estante de Leste Europeu, a minha guarnição de escritores russos, o meu estoque de sentenças Dostoyevsky. Situação não árdua, até simples, mas que levei horas perdido entertido num sebo da Consolação, consolando-me do que havia de bonito ali que ainda não tinha em minha estante. Consolando-me que ainda os teria. Ah, meu estoque de sentenças Dostoyevsky desfalcado... Falta-me os Irmãos Karamazov, pensei, aqui deve ter e posso sair e já fazer valer de alguma forma esta noite bonita, sim, e preenchida de um frio irresistível que deixavam pessoas mais irresistíveis - parcas, botas, suéteres, colã. Dizem que no inverno as pessoas ficam mais elegantes. Há uma certa verdade, mas no inverno é onde as pessoas melhor se fantasiam também para protegerem-se do frio. Oras, não vá me dizer que debaixo daquele blusinha da nova estação comprada na última semana inspirada na última semana de Milão não é preenchida muitas vezes por uma camiseta desbotada, amassada ou mesmo rasgada; bem, surge aqui, no inverno, a arte de transmutar-se, deixar o que jamais deve ser mostrado bem às escondidas e mostrar-se, como máscara, ou uma casca de ovo que reveste um conteúdo desintegrado - é uma época de fato belíssima e de muitas aparências, de mentirinhas ordinárias das quais todos nós gostamos, por certo.
A aventura pelo Dostoyevsky não terminou, voltemos a ela. Eu queria os Karamazov, os teria o homenzinho de barba branca que me atendeu? Pois não, jovem?, Sim, quais são os russos por aqui, onde estão os russos, em quais destas, senhor? Por aqui. Você procura Dostoyevsky, não é?, a letra D logo aqui, desculpe, um pouco mais acima. Ah, sim, obrigado, encerrei muito breve. Após o diminuto diálogo, pus-me a procurar pelo russo que apoquentava os nervos por não tê-lo lido ainda, ai, russo de merda que adoro, este era Dostoyevsky. Enfim, encontrei o estoque de sentenças Dostoyevsky que procurava, lá estavam os Irmãos, reluzindo com um micro-dourado que compunha sua lombada, uma edição um pouco antiguinha, sei lá, creio que dos setenta e poucos, mas isso não importava; a verdade era que o russo estava ali reluzindo pra mim na minha mão. Mas, o Idiota - homônimo de outra obra do russo - aqui não se deu que conta que não tinha notas ali, para pagar o livro. Merde! Não que estivesse na pindaíba, mas quase, mas é que o idiota acostumou-se com uso sensorial das compras utilizando o cartão de débito, nessas tem esquecido corriqueiramente de realizar saques periódicos de seu ordenado junto ao banco. Certo, O senhor aceita cartão de débito?, O senhorzinho de barba branca me respondeu com uma vozinha, não ouvi. Perguntei novamente, o senhorzinho, mais grave, respondeu que aceitava cartão de débito, mas de uma bandeira distinta da do meu cartão. Ah.
Estava quase convencido de que não seria o dia de levar o russo mesmo daquela vez. Triste. Este russo na livraria onde trabalho está esgotado. Merde! Paciência, garoto - tentei começar uma reflexão. Mas é um livro que não era difícil de se achar, uma obra essencial da estante de qualquer Leste Europeu ou mesmo de qualquer coisa que chamam de Literatura Universal, não seria mesmo nenhum bicho encontrar outra, mas havia achado graciosa aquela já muito manuseada edição que bulinei; que violei ao deslizar as minhas unhas já impregnadas de sebo de pó por aquelas páginas já tão violadas por quantas vão lá saber gerações... Mas, certo, esperarei outro dia para levá-la. Se é que estará lá, né? Experiências anteriores, como poderia já Herman Melville armar... Deixei certa vez o Bartleby lá, certinho, bonitinho... Voltei, Bartleby já não existia mais. Desespero. Ponto.
Certo, da próxima atento-me à pizza e a cola, adjuntos da minha busca por prazer nas noites ociosas, frias e quentes, de vontades meio absurdas de estufar-se em massa e deste líquido gasoso, prazeroso, criminoso... Vulgar como este meu estoque de sentenças Dostoyevsky incompleto.
(fim da parte 1)