sábado, 24 de outubro de 2009

"Passageiro Negro"



(Após as explanações abaixo, creio não ser preciso conhecer o idioma para entender a mensagem do filme).

Traduzindo-se literalmente a palavra Schwarzfahrer do alemão, o significado seria algo como passageiro negro, no entanto, a semântica da palavra negro aqui nada tem a ver com a cor negra, mas faz referência a algo ou a alguém ilegal em determinada situação, como encontramos no composto sintagmático do português câmbio negro. Câmbio negro é a designação de um câmbio, mercado ilegal. Portanto, o significado da palavra Schwarzfahrer é passageiro ilegal, que analogamos aqui no Brasil àqueles que não têm dinheiro para pagar a passagem e pedem para o cobrador para passar por baixo da catraca. Entendido? Bem, a partir daí fica mais fácil entender a ideia deste curta-metragem alemão, de 1993, que faz uma crítica bem-humorada com relação a todo tipo de preconceito, dando ênfase a questão do preconceito étnico, aquilo que também conhecemos por xenofobia.

Um problema mundial, especialmente nos países desenvolvidos, o problema da xenofobia (etimologicamente, xenos, original do grego, significa estrangeiro e phóbos significa temor) tem atingido pessoas de diversos lugares que saem de seus países para buscar uma oportunidade de vida melhor em outro país. A Alemanha, onde foi produzido o curta, é um país que possui um grande número de imigrantes, e a maioria é de origem turca. Estima-se que, aproximadamente, mais de 2 milhões de turcos vivam na Alemanha. Utilizando este panorama, um dos maiores diretores do cinema alemão contemporâneo, Fatih Akin, que é de raízes turcas, já dirigiu vários filmes de grande impacto dentro e fora da Alemanha, e os seus filmes sempre tematizam a questão da identidade turca na Alemanha, uma identidade cultural que tenta permanecer forte longe de seu país de origem mas que sofre com o preconceito e os problemas de rebaixamento social.

No curta-metragem Schwarzfahrer, vencedor do Oscar de melhor curta-metragem de 1994, o diretor Pepe Danquart, de forma lúdica e inteligente, aborda a questão, ora apresentada, da xenofobia utilizando um bonde como cenário. Primeiramente, é preciso problematizar algumas diferenças culturais entre Brasil e Alemanha para que ao assistir o curta não fiquemos perdidos, certo? Bem, algumas situações que aqui no Brasil são aceitas e executadas sem grandes problemas como, por exemplo, pessoas passarem por baixo da catraca do ônibus, onde dificilmente são barradas ou expulsas do veículo, até porque quando alguém passa por baixo da catraca o faz com o consentimento do responsável pela cobrança da passagem, o cobrador. Na Alemanha a coisa é um pouco diferente, aliás, bem diferente. A passagem (Fahrkarte) deve ser comprada sempre antecipadamente, ou seja, antes de se utilizar o transporte, e essa passagem pode ser individual (válida para aquela viagem) ou por validade de tempo (paga-se uma taxa única e você pode utilizar o cartão em quantas viagens precisar dentro do período comprado que pode ser de semanas ou de meses). Ah, na antiga República de Weimar não é tolerada a entrada em qualquer veículo de transporte público caso não se tenha o bilhete ou o cartão da passagem, os alemães são diretos e objetivos com relação a isso: se não tem dinheiro para comprar a passagem, vá caminhar, faz bem. Na Alemanha, o cobrador das passagens (Kontrolleure) não fica fixo sentado diante da catraca, mas à paisana, fora do bonde ou do ônibus, e pode entrar no veículo em qualquer ponto de parada para fazer a cobrança das passagens. As passagens individuais são carimbadas e as de período apenas conferidas. Quem não tiver a passagem é convidado pelo cobrador a retirar-se do veículo, seja qual for a alegação do Schwarzfahrer por utilizar o transporte sem portar o bilhete.

Voltemos ao curta. Depois de uma análise rápida, percebemos o bonde como um microcosmo da Alemanha, representada com as suas minorias étnicas, como o rapaz negro que senta-se ao lado da senhora; vemos dois meninos em pé que são de origem turca; os demais passageiros pode-se dizer que são a representação da população alemã que, muitas vezes, se mostra pouco preocupada ou indiferente à questão dos imigrantes e às vezes não faz muito para mudar manisfestações explícitas de xenofobia e, com um grande mutismo, quietos, ficam à parte à ação que se desenrola no bonde. A senhora, de um mau-humor (antes fosse apenas mau-humor), representa a parte xenófoba da população, parte que é avesso à todo o tipo de pessoa ou manifestação que provenham de outro país, qualquer demonstração de cultura e credo que sejam diferentes dos seus.

A ação começa quando o bonde chega no ponto de parada e um grande número de pessoas entra no veículo. Mas dentre eles, dois personagens importantes para a trama: o jovem negro e o rapaz cuja motocicleta o deixou na mão, este último é o Schwarzfahrer, pois ele deixa a motocicleta de lado e, devido a pressa, não compra o bilhete e corre para pegar o bonde. Quando as pessoas já estão acomodadas no interior do veículo, o rapaz negro, ao ver um lugar vago ao lado da senhora que era ocupado pela sua bolsa, chega junto à ela e pergunta: "O lugar está livre?" A senhora não responde, apenas direciona ao rapaz um olhar ácido, que só falta perfurá-lo. Como a senhora não responde e não se habilita a tirar a bolsa do lugar vazio, o jovem senta-se mesmo assim, provocando uma certa ira da senhora. A partir daí, esta senhora começará a soltar todo tipo de impropérios e ofensas preconceituosas direcionadas ao jovem e à todos que atendam os "requisitos" e sejam alvo de suas palavras de injúria e de intolerância. A única manifestação verbal contra as palavras da senhora vem dos meninos de raízes turcas. Mas logo o grito de um deles contra a senhora é "abafado" pelo silêncio que ecoa no bonde. Mas no decorrer da trama nos perguntamos: alguém fará alguma coisa para calar a boca da velha?, o Schwarzfahrer será expulso do bonde? Assistindo-se ao filme teremos esta e outras respostas.

O fim do filme, que de algum modo não deixa de ser surpreendente, nos ensina aquilo que costumamos ouvir desde crianças: não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você.

E este é apenas um reparte e amostra da ignorância que temos de lidar em nossos dias. Reflita
e boa sessão!


P.S.: Há no You Tube uma versão legendada em inglês deste filme, mas optei em colocar a versão original sem legendas pois a qualidade de imagem desta é bem superior e, como dito no início deste post, após a leitura do texto creio que será bastante compreensível a temática e a abordagem deste curta. A edição legendada pode ser vista acessando o link: Schwarzfaher com legendas em inglês.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

François Truffaut


la nuit américaine - jean-pierre léaud, jaqueline bisset et françois truffaut

assistir um 'truffaut' pode ser tão delicioso ou mais que, dependendo do dia, uma trepada ou uma barra de chocolate. todas essas coisas controlam as nossas ansiedades, mas apenas truffaut as materializa diante dos olhos para fazer-nos entendê-las. a bruteza do sexo é boa e das melhores coisas humanas que podem ser trocadas deixando-se o raciocíno à parte, misturando-o ao singelo modo de perceber a vida sem percebê-la; o chocolate nos reaviva e faz-nos buscar um 'eu' que a nossa 'criança' quer e que o nosso 'adulto' repele. truffaut junta o raciocíno, o despercebimento e o prazer e convida à nossa 'criança' e ao nosso 'adulto' a entreterem-se numa mesa de lanche ou diante de uma tela, onde os sonhos se cristalizam mutando lágrimas escorridas em fotogramas que intuirão o melhor meio de se caminhar entre os corredores de nossa casa para os quartos em que guardamos e deixamos repousar nossas vidas sobre travesseiros. a nossa essência, a nossa demência truffaut pode nos mostrar. precisou de muito ou de pouco, conforme a percepção de cada indivíduo. a sensação que nos causa um 'truffaut' é diversa, multicolorida ainda que a película seja preto & branco. nascer, assistir um tourbillon é magna; ver crescer antoine doinel é sublime, tal qual ver a nossa 'criança' crescer, subir às alturas e dizer que já está pronta para o mundo. e como truffaut nos preparou e foi tão paciente em procurar fazer com que esse mundo não fosse tão ruim assim como o vemos nos jornais, na tv e no cinema, este último sua paixão precoce.


desculpe-nos, françois, mas há tanto por que chorar e choramos ao lembrarmo-nos de películas que falam da amizade, da separação, do medo, do futuro que sempre nos permearam. e continuarão assim num movimento contínuo, qual uma regra da natureza. mas ainda será preciso um 'truffaut' para uma outra lágrima bem resolvida? advindo françois que nos tornou seus sequazes, ainda há estórias e histórias que precisam ser contadas, mostradas e assistidas, mas já não, talvez, magnânimas como as suas lentes puderam nos fazer crer e intuir. haja vida, françois. haja movimento e um som e uma canção que sintetize o turbilhão da vida em que você nos colocou.

museu imaginário de marcel proust

ce que je reproche aux jornaux, c'est de nous faire faire attention tous les jours à des choses insignifiantes, tandis que nous lisons trois ou quatre fois dans notre vie les livres où il y a des choses essentielles.

du côté de chez swann -
à la recherche du temps perdu. marcel proust - gallimard, page 36.

*

o que censuro aos jornais é fazer-nos prestar atenção todos os dias a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais.


o caminho de swann - em busca do tempo perdido. marcel proust - globo, página 48 - tradução mário quintana

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Letras chilenas

Roberto Bolaño em foto para o jornal El País (Espanha)

Há esperança para o futuro da literatura, uma esperança latino-americana, esperança chilena, mais especificamente Roberto Bolaño. Acabei de ler Noturno do Chile. E percebi o quão precioso (não consigo encontrar outro verbete como predicativo) é o escritor chileno, quão doce, lúgubre, político e essencialmente literário é Noturno do Chile.

Eu estava em paz. Agora não estou em paz. Estas palavras são de Sebastián Urrutia Lacroix, o narrador deste livro que não possui divisão em capítulos, é contínuo, como se tratasse de um relato único do padre, cuja paixão, além do sacerdócio, é a literatura e o desenvolvimento da sapiência e paixão através da crítica literária. Num monólogo, Sebastián Lacroix desenvolve as suas memórias, os seus desejos, aprendizados e experiências que vão desde o contato com Farewell, o maior crítico literário do Chile e espiar Pablo Neruda olhando para o céu fazendo poesia à dar aulas de marxismo ao general Pinochet e sua cúpula - na época do golpe militar de 1973 por Pinochet ao primeiro governo socialista eleito democraticamente na América Latina que era o de Salvador Allende.

O livro é político mas este não é necessariamente o seu viés, o livro é essencialmente literário. Quase como uma ode ao Chile e às suas letras, não só pelas memórias de Lacroix, com Neruda e outros escritores e aspirantes ao mundo das letras chilenas, mas como ele é elementar ao mostrar uma paixão de um homem pelo seu país, pela sua história, por seus símbolos e, finalmente, por sua memória que o faz mais forte e vigoroso em cada palavra enunciada sobre a vida e a experiência com seus patrícios.

Há passagens deliciosíssimas, como o encontro com Neruda na casa de Farewell, como o relato da história do escritor chileno don Salvador Reyes ao encontrar o escritor alemão Ernst Jünger em Paris na casa de um amigo guatemalteco. E há passagens de suma reflexão, quando é "convidado" a lecionar marxismo à Pinochet e quando rememora os saraus na casa da então amiga María Canales, que posteriormente será descoberta, melhor, o marido de Canales, como colaborador do regime de Pinochet. O livro não é o retrato somente da transformação de um país, mas principalmente deste processo com os seus indivíduos.

Se houver uma predisposição de tempo, é possível "traçar" o livro de uma única vez, com as suas pouco mais de 100 páginas.

É uma infelicidade muito grande Bolaño não estar mais entre nós (o escritor morreu em 2003 em decorrência de problemas no fígado), porque o mito que o cerca, e não trata-se de só mito, mas de muita coerência, o aproxima de Cortázar, Borges, Carpentier, Arlt e o que de melhor as letras hispano-americanas construíram e presentearam o mundo. Terminado Noturno do Chile tive a impressão de que lia um cânone que ainda não era, mas o será em hora que não tardará chegar.

Num artigo do jornal espanhol El País, de 2008:

(...)Bolaño ha sido condenado a la fama póstuma y a una reverencia que él mismo hubiese abominado. Antes de su muerte en 2003, era un escritor desdeñado, admirado tan sólo por sus amigos(...)

Ainda que a luz da vida de Bolaño tenha se apagado há 6 anos, ainda acredito que há esperança nas letras, na nova literatura, na jovem literatura... Que o Chile e outros países sejam testemunhas sempre do frescor da boa letra, bela, etérea e eterna.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Os teutos de novo

Outubro: conhecido no meio literário como um mês de premiações do segmento ao redor do mundo. Sem divagações, a mais esperada é a divulgação do nome do vencedor do Nobel de Literatura. Muitos ficam ansiosos e se perguntam "Quem levará dessa vez?". Tal como uma espécie de "oscar" da literatura. Mas eu não gosto deste tipo de comparação - são coisas completamente distintas. Mas quem já trabalhou com livros sabe que mesmo os mais desligados por este universo da ficção, literário, às vezes se volta a prestar atenção no nome que será divulgado pela academia sueca, pra então correr pra livraria ou pra internet pra comprar o que seria "o livro mais relevante" daquele escritor ou daquela escritora.

Nesta manhã, a Real Academia Sueca de Ciências agraciou a escritora romeno-alemã Herta Müller com o Nobel de Literatura de 2009. Ainda que o escritor deste blogue, particularmente, não tenha lido ainda nenhuma obra desta escritora, mas, como curioso e estudioso da literatura de expressão alemã, não poderia passar despercebido pelo universo que rodeia a ficção da escritora. Para Herta Müller a literatura é uma forma de redenção e de trabalhar a situação de repressão vivida quando ainda residia na Romênia, até meados dos anos 80, época da ditadura de Nicolay Ceaucescu, quando então mudou-se para a Alemanha. Um dos pilares de Herta é a vida de oprimidos, vítimas de guerra, e de pessoas perdidas em meio ao terror de um mundo que é indiferente aos seus problemas e às suas aspirações. Outros escritores, vencedores do Nobel ou não, já menearam a literatura com este viés sociológico ou libertário, casos como os de William Faulkner, Joseph Heller, Carson McCullers, Toni Morrison, Günter Grass, Alfred Döblin, Máximo Gorki, etc.

Com este prêmio, a Alemanha soma já 11 escritores laureados com o mais representativo dos prêmios concedidos no mundo da literatura - indepententemente de discussões de sua significância politica ou das relativizações de seu mérito. Torna-se o país com o maior número de "conquistas", ultrapassando os norte-americanos, que detêm 10 premiações. Pode servir como uma amostragem de quão os países investem e valorizam a formação intelectual - não obrigatoriamente, mas culturalmente - de pensamento e de discussão, sintetizada numa única palavra: EDUCAÇÃO.

É preciso ressaltar que o Nobel de Literatura também não é um prêmio dos mais justos, pois grandes escritores nunca o conquistaram, ainda que tivessem requisitos de sobra, como Marcel Proust, Juan Rulfo, James Joyce, Virginia Woolf e João Guimarães Rosa, só para citar alguns. E talvez o prêmio Nobel de Literatura não signifique quase nada, e não será um prêmio literário que alçará um país ao status quo do equilíbrio econômico e social. Não é mesmo. No entanto valorizamos como uma essência fundamental o título de País do Futebol. Título que também não nos confere melhoria nenhuma, no quesito cidadão brasileiro, e não nos traz reputação no quesito respeito e justiça com o seu povo, no âmbito mundial. Mas que é bonito é, e tem a sua significância e importância dentro da nossa cultura popular. Mas seria preferível nunca ter vencido Copa do Mundo nenhuma e ter uma justiça educacional que fizesse com que pensadores brasileiros tivessem os seus nomes gravados na história do pensamento de relevância do mundo. Temos 5 Copas do Mundo e nenhum Nobel. A Argélia, país que já viveu as desmazelas de uma guerra civil, não conquistou nehuma Copa, tem 1 escritor com o Nobel: Albert Camus; o Chile, nosso vizinho, nunca conquistou a Copa do Mundo, mas tem 2 escritores que venceram o Nobel de Literatura: Gabriela Mistral e Pablo Neruda.

E pra os que acham que é impossível concomitantemente pensar e fazer, ler e jogar, ser sério e ser feliz, a Alemanha, novamente mostra que, utilizando a analogia da literatura e do futebol, é possível, com um pouco de organização: a Alemanha é tricampeã mundial de futebol.


País que não lê, não escreve. Intão vamu superfaturá e fazê olimpíada...

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A Olímpiada que precisaríamos vencer

É encantador ver o nosso Presidente empenhado em trazer os Jogos Olímpicos para o Brasil, assim como fez para trazer a Copa do Mundo, ainda que esta segunda não lhe tenha demandado muito esforço.

Mas seria deveras encantador, e muito mais, se houvesse empenho tamanho - político e financeiro - para que houvesse uma transmutação de condição da situação de idosos, trabalhadores, atletas e também para os futuros trabalhadores, atletas e idosos: nossas crianças. Ou seja, dos Brasileiros.

Sem o objetivo de querer levantar bandeira e discurso de repúdia aos Jogos Olímpicos ou à Copa do Mundo, já que o alcance deste veículo (blogue - isso, escreve-se com e no final, porque eu quero) é pequeno, quase nulo, mas seria bom, boníssimo e encantador um Rio sem balas encontradas e sem balas perdidas; uma São Paulo sem o desarrazoado problema da poluição e sem o insistente Tietê afogado no plástico e no esgoto (desde que o blogueiro tinha 11 anos ouve que o rio será um dia limpo), e todo o resto do país com um programa de educação e sustentabilidade sério.

Há outra Olímpiada que precisaríamos vencer, ou pelo menos chegarmos no caminho de, para que pudéssemos encher o peito para falar que somos um país de primeira grandeza, como o nosso querido e popular Presidente fez questão de ressaltar, logo que o Rio foi anunciado como a sede olímpica de 2016.

Bem, a outra Olímpiada é aquela que sentimos dia-a-dia. Que parece esquecida por tanta gente, principalmente por aqueles que cuidam do dinheiro dos nossos impostos.

Gostaríamos apenas que o Brasil não fosse uma mentira, como é a China. Pequim recentemente organizou os Jogos Olímpicos, e isso não faz da China um país melhor. Podem ter desenvolvido para os Jogos uma infra-estrutura social, econômica e esportiva que aquela cidade não conhecia, mas, como um todo, a China continua a ser uma grande e dantesca mentira. Sabe-se bem as condições limítrofes de vida da grande parte da população chinesa que vive sob condições precárias, sub-humanas, e que Pequim ou Xangai, cidades desenvolvidas da grande república da Ásia, não servem de espelho para demonstrar a verdadeira China, ou aquela que acreditamos ser o espelho de seu povo. O que está bem às claras, é que o comprometimento do governo chinês na realização dos Jogos olímpicos de Pequim era nada mais do que uma "propaganda" transliterada de um país que economicamente galopa para galgar o posto mais alto da economia mundial. E propaganda não é novidade no que diz respeito ao cerne olímpico, basta revisar a história e verificar que os Jogos de 1936, de Berlim, tentou ser utilizado por Hitler como propagação das ideias nazistas, ainda que não tenha logrado o sucesso esperado, e este fracasso é sintetizado pela imagem do atleta negro Jesse Owens que desbancou a chamada "raça superior" ou "ariana" de Hitler, nas Olímpiadas de Berlim.

Portanto, tudo o que Brasil não precisa é de propaganda, porque quem vive neste país não se vê representado naquele vídeo maquiado que o Comitê Olímpico Brasileiro utilizou para "emocionar" os delegados do COI, e todos aqueles que assistiam à apresentação. Ali se vê uma Rio de Janeiro límpida, colorida e encantadora. Este Rio já existiu, hoje não mais. O fato é que teremos um evento de alta magnitude dentro de pouco mais de 6 anos. E nós, brasileiros, gostaríamos de que as Olimpíadas, como a história nos mostra, não fossem, mais uma vez, realizadas como um disfarce e maquiagem; uma rele propaganda de um país, para fazer média com o mundo para conquistar objetivos meramente estratégicos e geopolíticos que nem sempre coincidem com a melhoria e o bem-estar de sua população, como, por exemplo, uma cadeira permanente no conselho de segurança da ONU, para gabar-se de uma pseudo-importância no cenário mundial, e no entanto não cumpre com os mais elementares deveres de casa, que é a atenção, segurança e o cuidado aos que formam esta nação: toda a população. Chega de rímel e de pó-de-arroz para mascarar falta de propostas , de solução, ou falta de vontade em encarar os nossos problemas históricos, coloniais, estes, sim, muito elementares.

Enfim, este texto era para ser apenas um pequeno parágrafo que serviria de introdução à reprodução do texto de Clóvis Rossi, publicado hoje - 5/10 - na sua coluna Janela Para o Mundo, no Folha Online, que aborda aquela Olimpíada que precisaríamos vencer. Na verdade, precisamos - pelo menos deveria ser entendido assim, como uma obrigação, como meta para trabalharmos melhor essa dignidade que tanto buscamos que é a ideia de sermos Brasileiros, apesar do Brasil.


*********


A Olimpíada que perdemos. Sempre

Clóvis Rossi



Não deixa de ser pedagógico o fato de as Nações Unidas terem divulgado o seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) apenas 48 horas depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter decretado que o Brasil passara a ser um país de "primeira classe", porque o Rio fora escolhido para sede da Olimpíada de 2016.


Não, presidente, o Brasil é de 75ª classe, a sua classificação no IDH, vexatória como sempre.

Aliás, toda vez que sai um ranking internacional que mede algum aspecto do desenvolvimento humano, o Brasil passa vergonha.

Ficou, desta vez, quase empatado com a Bósnia-Herzegovina. Ajuda-memória: a Bósnia-Herzegovina é aquele pedaço da antiga Iugoslávia que passou faz pouco menos de 20 anos por um genocídio --e nada é mais devastador para o desenvolvimento humano que uma guerra como aquela.

O Brasil, ao contrário, não tem uma guerra desse tipo desde a do Paraguai, no remoto século 19. Não obstante, empaca no desenvolvimento humano desde sempre.

O que torna ainda mais desagradável o resultado é o fato de que, nos 15 anos mais recentes, o país teve dois governos de eficiência acima do padrão usual e de proclamadas intenções sociais --algumas realizadas, outras nem tanto ou nada.

O Brasil de fato passou a ter, nos últimos anos, um peso internacional inédito na sua história, mas o IDH só dá total razão ao que escrevi domingo, para a Folha: "Nada de perder a perspectiva: os que fizeram a viagem [rumo à primeira classe] são poucos, pouquíssimos políticos, um bom número de diplomatas e funcionários públicos graduados, um número crescente mas ainda pequeno de empresários. É uma vanguarda que, se olhar para trás, verá que a grande massa ainda come poeira".

A ONU assinou embaixo. E de quebra desmontou a falácia dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) como as grandes potências de um futuro próximo. A Rússia ficou pouco acima do Brasil, no 71º lugar; a China, bem abaixo, no 92º. A Índia, então, é de terceira classe no capítulo desenvolvimento humano (134º posto).

Fonte: Folha Online

domingo, 4 de outubro de 2009

O fim da filosofia e o bovarismo de Nietzsche

O Übermensch (Super-homem) e o fim da Igreja. A contradição entre Cristo e Igreja é ao que nos envereda o zoroatrismo. Nietzsche: quiseram anulá-lo associando-o ao nazismo. Ignorar o caminho positivo do Übermensch ou das palavras emprestadas à travestida ficcionalidade de Zaratustra. Mas era muito tarde, Nietzsche já estava louco, e desprezava tudo aquilo. Havia comiseração àquele silêncio. Deus está morto.

A literatura, a psicanálise e a loucura de Nietzsche.


Na Primeira Parte, Capítulo V, de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, há uma das cenas mais fortes e emblemáticas do romance. Raskólnikov sonha com a sua infância. Sonha com um açoite descabido que assistira de uma égua. Uma égua pangaré que carregava uma telega (carroça) desproporcional ao seu porte e tamanho, como reproduz a passagem do livro:

(...)E eis o seu sonho: está indo com o pai pela estrada que leva ao cemitério e passam ao lado da taberna; ele segura a mão do pai e olha apavorado para a taberna. Uma circunstância especial lhe chama a atenção: desta feita é como se ali houvesse uma festa, com um bando de pequeno-burgueses empetecados, camponesas com seus maridos, e toda uma gentalha misturada. Todos estão bêbados, cantando, e ao lado do terraço da taberna há uma telega, mas uma telega estranha. É uma daquelas telegas grandes às quais se atrelam grandes cavalos de carroça e em que se transportam mercadorias e barris de vinho. Ele sempre gostou de ficar olhando para esses enormes cavalos de carroça, de crinas longas, patas grossas, que caminham com tranquilidade, a passos cadenciados, e arrastam uma verdadeira montanha sem um mínimo de esforço, como se lhes fosse mais fácil andar puxando cargas que sem elas. Mas agora, coisa estranha, na telega grande há uma pangaré camponesa baia, pequena, em pele e osso, daquelas que ele via frequentemente e vez por outra se arrebentavam com alguma carga alta de lenha ou feno, principalmente se a carga encalhava na lama ou numa trilha deixada por rodas de carroça, e aí os mujiques sempre as chicoteavam de modo tão dolorido, tão dolorido, às vezes em pleno focinho e nos olhos, que ele ficava com tanta pena, tanta pena de assistir àquilo que por pouco não chorava, e a mãe sempre o retirava da janela.(...)¹

Logo depois, há a deplorável execração da pequena égua praticada no lombo, provocada pelos vagabundos, pequeno-burgueses, como o próprio autor os denomina, simplesmente por ela não ter forças para carregar aquela gente, aquela carga:

(...)- Açoitem até matar! - grita Mikolka - Já que se começou. Vou açoitar até matar!(...)

(...)- Onde já se viu uma eguinha como essa puxar uma carga desse tamanho! - acrescenta outro.(...)

-Não se metam! É um bem meu! Faço o que quiser. Senta mais gente! Senta todos! Quero que ela saia de todo jeito galopando!...(...)²

Após matarem a égua, o menino Ralskolnikóv perde o controle:

(...)Mas o menino está fora de si. Com um grito abre caminho entre a turba na direção da baiazinha, abraça-lhe o focinho morto, ensanguentado, e a beija, beija-a nos olhos, nos beiços... Depois dá um salto de repente e tomado de fúria investe de punhozinhos cerrados contra Mikolka.(...)³

Onde entra a loucura de Nietzsche? E a Psicanálise? Pois bem, não é novidade que Nietzsche já adiantara, muito antes do desenvolvimento dos estudos freudianos, que Dostoiévski, para ele, era o primeiro e maior psicanalista. Para ele, Dostoiévski, através das páginas naturalistas de Memórias do Subsolo, Crime e Castigo e Irmãos Karamázov investigou a consciência humana e a explicitou, como uma desrazão.

Ao ler Formas Breves, de Ricardo Piglia, revejo a cena de Crime e Castigo e a associação dela com o fim da filosofia e a loucura de Nietzsche - especificamente no capítulo Notas sobre literatura em um Diário:

SEGUNDA-FEIRA

Uma das cenas mais famosas da história da filosofia é um efeito do poder da literatura. Nietzsche, ao ver como um cocheiro castigava brutalmente um cavalo caído, abraça-se chorando ao pescoço do animal e o beija. Foi em Turim, em 3 de janeiro de 1888, e essa data marca, em certo sentido, o fim da filosofia: com esse fato começa a chamada loucura de Nietzsche, que, tal como o suicídio de Socrates, é um acontecimento inesquecível na história da razão ocidental. O incrível é que a cena é uma repetição literal de uma situação de Crime e Castigo de Dostoiévski (parte I, capítulo 5), na qual Raskólnikov sonha com uns camponeses bêbados que batem num cavalo até matá-lo. Dominado pela compaixão, Raskólnikov se abraça ao pescoço do animal caído e o beija. Ninguém parece ter reparado no bovarismo de Nietzsche, que repete uma cena lida. (A teoria do Eterno Retorno pode ser vista como uma descrição do efeito de falsa memória que a leitura produz).4

A partir dali, era o fim de Nietzsche. Dostoiévski poderia ter sido este Super-Homem, mas desistiu porque preferiu unir-se a outros cuja filosofia era outra, ou que pelo menos não dispunham de um pensamento que provocasse a mobilização do espírito humano? Difícil saber. Nietzsche morreu e Freud postulou a contrariedade intrínseca dos indivíduos, do homem, em 1930, em O Mal-Estar na Civilização. Para Freud, ser e pensar não são coincidentes, e posteriormente Lacan apenas reafirmou esta ideia.

E hoje não há como ignorar a loucura de Zaratustra e a serenidade pertubadora de Raskólnikov. Por mais que neguemos, estes nos mostram que somos todos ambíguos tentando, todo o tempo, sem nos darmos conta, fugir de nós mesmos, mas acreditando ser portadores da absoluta verdade e transparência, que já sabemos, que não existe. Não percebemos nada disso porque, de algum modo, nossa consciência está presa em um subsolo, e haja inconsciência para saber disso.


Bibliografia

1
, 2 e 3 - DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000 (tradução de Paulo Bezerra);

4 - PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Cia. das Letras, 2004 (tradução de José Marcos Mariani de Macedo)