segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Anedota do fim do mundo

A seara nova, hiperbólica e cheia de estilo, da letra descoberta me encanta para o desafio.
Eu estava no quintal de casa quando senti o cheiro molhado da chuva que molhou o que eu pensava. Aquela hora eu não passava de algumas ideias encharcadas.
Mas eu me constituo de amor e de mais uma meia dúzia de palavras parecidas, que tentam explicá-lo. Mas amor, me dizem, é algo tão medieval, antiquado, velho, sem cor, desbotado pelo tempo. E eu confirmo para não causar controvérsias. Mas renego, com alguma veemência, o que externamente digo com os olhos, ou deixo escapar como se fossem palavras ditas com o coração que os verbos esplêndidos acolchoam, e deixam suavizar nos ouvidos dos outros. Eu não sou os outros. Sou-me. Ainda que sinta que quero te ser, se ter-te não for nenhum sacrifício, ou algo que os meus braços limitadíssimos possam alcançar.
Eu não sei de nada e sei alguma coisa. Sei que a seara nova, de uma palavra ainda não encontrada, poderá fazer de um indivíduo comum mais comum ainda, porém mais feliz. Eu agradeço aos signos que possam me atestar sobre essa coisa que rejo com um humor sereno, mesmo ante dias não comemoráveis. Mas ainda posso dizer que algo régio que sintetiza elementos dos quais não sei nem o nome, a denominação, mas fabricam o ser que escapa a mim, o mesmo ser que é capaz ainda de fazer uma anedota sobre o fim do mundo.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Antologiazinha

Salve a dignidade da pessoa humana. Mas nem por isso podemos esquecer a dignidade da pessoa hipopotamídea.

João-sem-braço não tem dor de cotovelo.

Quero uma tevê gigante, só não sei se uma tevê de "plaza" ou de "LSD". Que chique! Estão comercializando tevês alucinógenas.

Quanta mágoa essa dignidade da pessoa humana tece! Traição nas quatro rodas.

Como perdoar uma traição? A mágoa forte corrói o coração... E como desmagoa? Me ensina a desmagoar? Como desmagoa um coração? Como se produz uma desmágoa? As pessoas desbundam pra isso. As pessoas sem bunda reclamam do desbunde.

E a terra gira como a pomba gira. E de grão em grão a galinha enche o prato.

Viver é preciso, morrer nem tanto. Santo Daime, dai-me forças!

sábado, 28 de novembro de 2009

Reminiscências sobre uma cidade em síncope

"- É o Exu Tranca-Rua. Raça do 'carai'.
- Alimenta o governo com imposto. Imposto pago, dinheiro gasto e não visto.
- Obra do governo do cão!
- Asfalto não bebe água.
- É muito sangue pra pouca artéria..."

A lâmina d'água escorre pelo vidro pelo lado de fora. Estou dentro, pra dentro não há chuva. Ela só acontece lá fora. Um mundo se dissolve em água, impaciência e atraso. E a água não serve para baixar o fogo da consciência.

"- Raça do 'carai'."

Passaram-se já 20 minutos e eu ainda estou preso no semáforo. O ônibus não se move. Proibiram o trânsito? Não, é o próprio trânsito que impossibilita o trânsito.

São Paulo, quase 8 da noite: no ônibus, vejo uma fila de inequívocas luzes vermelhas acendendo-se em meio à lentidão dos maus e dos bons. O ônibus sobe a ponte, e é dali que vejo o rio que corre sujinho sujinho... Nem corre mais, já morreu. E por que insistem com o rio? Não sei, mas acredito que seja pelo mesmo motivo que insistem com as pessoas. Acreditam que do rio ainda possa fluir um fio de saúde. Como ocorre entre as pessoas, acreditam que dali possa fluir saúde e um riso raso, que se aprofunda dentro, pra dentro, pra sempre.

sábado, 21 de novembro de 2009

Lá vai Laila

Aí. Lá vai Laila. Vai com a sua mansuetude retemperando as equivocadas ideias. As ideias equivocadas. Era tão hora de dormir que ela acordou, porque na tão hora de acordar ela dormirá. Na folgança dela tão beligerante ela alimenta a cupidez por melhores dias, de pouco equívoco do choco do cotoco do derroco do massaroco do mundo oco. Ela aprende com os quebas, e erra de tão promesseira. Ela acredita que a bocedização das pessoas estraga o mundo, o mundo oco.

"Deixa esses despiciendos, não os importantize com tão mora importância, pois a minha espécie mor de volitiva vontade era de virar água neste seco-seco oco do meu coração, meu mundo de benção, das coisas doentes e sãs".

Era Laila senão se não não era se não não não era Laila. Laila respirava entre os seus paragões, vivia naquela parecença diferente da igualdade distinta das particularidades comuns dos seres coletivos únicos. Laila naquelas tardes descansava sob uma boceta-de-mula com as mãos ocupadas com uma sempre-viva, e era tão assim que não era tão bem assim mas era Laila na atuosidade esperada dos descansantes.

"Queria um bochinche pra distração, sem discutição ou modo de preocupar. Sem locupletamento para a minha alegria, que venha o Sol e me sorria, pois não estou para não sorrir, estou é o contrário".

Laila e os seus etcéteras e tanta parentesiação para não se aguentar. Mas Laila não temia, sorvia vida, música e o desespero tão suave que tudo lhe parecia verde, nem do vermelho lembrava. Era tudo certo, e qualquer sorriso que dela vinha era lidimamente produzido. Muito bem fabricado pela autenticidade carismática dos seres inócuos mais perigosos, fracos e tão fortes. Era Laila assim com tudo, com seus cupinchas, brindando com curaçau o festejo, mesmo nas jaças das verdades.

"Amiúde, pensei que o mundo era pra sonho além. Insistem comigo que é aquém. Mas eu sou o objeto sonhado, cá, além de mim".

E Laila vivia e sonhava. Escusava-se dos levados, mas ela mesma tão só levada que a fazia escrever sonho por sonho em sua caderneta, ao som do sanhaço-cinzento, que esperava colorir os momentos que fabricavam os seus dias:

"Caligrafei o achado sonhado. Estipulei o verbo findo conjugado na letra grossa tanta de tanta tinta e de tanta vida. Meigo é o meu desejo sincero de querer relatar e escrever essa vida que não se fia, pois há anjo que me espia".

Laila serenou e voltou a cabeça para o lado de lá, para desacordar num sonho que lhe mostrará naquela noite os dias vividos de amanhã que ela simpatizou ontem, e que vive sempre. A mão direita delicada dela desprendou-se do peito e deixou cair rente à cama a sempre-viva...

sábado, 24 de outubro de 2009

"Passageiro Negro"



(Após as explanações abaixo, creio não ser preciso conhecer o idioma para entender a mensagem do filme).

Traduzindo-se literalmente a palavra Schwarzfahrer do alemão, o significado seria algo como passageiro negro, no entanto, a semântica da palavra negro aqui nada tem a ver com a cor negra, mas faz referência a algo ou a alguém ilegal em determinada situação, como encontramos no composto sintagmático do português câmbio negro. Câmbio negro é a designação de um câmbio, mercado ilegal. Portanto, o significado da palavra Schwarzfahrer é passageiro ilegal, que analogamos aqui no Brasil àqueles que não têm dinheiro para pagar a passagem e pedem para o cobrador para passar por baixo da catraca. Entendido? Bem, a partir daí fica mais fácil entender a ideia deste curta-metragem alemão, de 1993, que faz uma crítica bem-humorada com relação a todo tipo de preconceito, dando ênfase a questão do preconceito étnico, aquilo que também conhecemos por xenofobia.

Um problema mundial, especialmente nos países desenvolvidos, o problema da xenofobia (etimologicamente, xenos, original do grego, significa estrangeiro e phóbos significa temor) tem atingido pessoas de diversos lugares que saem de seus países para buscar uma oportunidade de vida melhor em outro país. A Alemanha, onde foi produzido o curta, é um país que possui um grande número de imigrantes, e a maioria é de origem turca. Estima-se que, aproximadamente, mais de 2 milhões de turcos vivam na Alemanha. Utilizando este panorama, um dos maiores diretores do cinema alemão contemporâneo, Fatih Akin, que é de raízes turcas, já dirigiu vários filmes de grande impacto dentro e fora da Alemanha, e os seus filmes sempre tematizam a questão da identidade turca na Alemanha, uma identidade cultural que tenta permanecer forte longe de seu país de origem mas que sofre com o preconceito e os problemas de rebaixamento social.

No curta-metragem Schwarzfahrer, vencedor do Oscar de melhor curta-metragem de 1994, o diretor Pepe Danquart, de forma lúdica e inteligente, aborda a questão, ora apresentada, da xenofobia utilizando um bonde como cenário. Primeiramente, é preciso problematizar algumas diferenças culturais entre Brasil e Alemanha para que ao assistir o curta não fiquemos perdidos, certo? Bem, algumas situações que aqui no Brasil são aceitas e executadas sem grandes problemas como, por exemplo, pessoas passarem por baixo da catraca do ônibus, onde dificilmente são barradas ou expulsas do veículo, até porque quando alguém passa por baixo da catraca o faz com o consentimento do responsável pela cobrança da passagem, o cobrador. Na Alemanha a coisa é um pouco diferente, aliás, bem diferente. A passagem (Fahrkarte) deve ser comprada sempre antecipadamente, ou seja, antes de se utilizar o transporte, e essa passagem pode ser individual (válida para aquela viagem) ou por validade de tempo (paga-se uma taxa única e você pode utilizar o cartão em quantas viagens precisar dentro do período comprado que pode ser de semanas ou de meses). Ah, na antiga República de Weimar não é tolerada a entrada em qualquer veículo de transporte público caso não se tenha o bilhete ou o cartão da passagem, os alemães são diretos e objetivos com relação a isso: se não tem dinheiro para comprar a passagem, vá caminhar, faz bem. Na Alemanha, o cobrador das passagens (Kontrolleure) não fica fixo sentado diante da catraca, mas à paisana, fora do bonde ou do ônibus, e pode entrar no veículo em qualquer ponto de parada para fazer a cobrança das passagens. As passagens individuais são carimbadas e as de período apenas conferidas. Quem não tiver a passagem é convidado pelo cobrador a retirar-se do veículo, seja qual for a alegação do Schwarzfahrer por utilizar o transporte sem portar o bilhete.

Voltemos ao curta. Depois de uma análise rápida, percebemos o bonde como um microcosmo da Alemanha, representada com as suas minorias étnicas, como o rapaz negro que senta-se ao lado da senhora; vemos dois meninos em pé que são de origem turca; os demais passageiros pode-se dizer que são a representação da população alemã que, muitas vezes, se mostra pouco preocupada ou indiferente à questão dos imigrantes e às vezes não faz muito para mudar manisfestações explícitas de xenofobia e, com um grande mutismo, quietos, ficam à parte à ação que se desenrola no bonde. A senhora, de um mau-humor (antes fosse apenas mau-humor), representa a parte xenófoba da população, parte que é avesso à todo o tipo de pessoa ou manifestação que provenham de outro país, qualquer demonstração de cultura e credo que sejam diferentes dos seus.

A ação começa quando o bonde chega no ponto de parada e um grande número de pessoas entra no veículo. Mas dentre eles, dois personagens importantes para a trama: o jovem negro e o rapaz cuja motocicleta o deixou na mão, este último é o Schwarzfahrer, pois ele deixa a motocicleta de lado e, devido a pressa, não compra o bilhete e corre para pegar o bonde. Quando as pessoas já estão acomodadas no interior do veículo, o rapaz negro, ao ver um lugar vago ao lado da senhora que era ocupado pela sua bolsa, chega junto à ela e pergunta: "O lugar está livre?" A senhora não responde, apenas direciona ao rapaz um olhar ácido, que só falta perfurá-lo. Como a senhora não responde e não se habilita a tirar a bolsa do lugar vazio, o jovem senta-se mesmo assim, provocando uma certa ira da senhora. A partir daí, esta senhora começará a soltar todo tipo de impropérios e ofensas preconceituosas direcionadas ao jovem e à todos que atendam os "requisitos" e sejam alvo de suas palavras de injúria e de intolerância. A única manifestação verbal contra as palavras da senhora vem dos meninos de raízes turcas. Mas logo o grito de um deles contra a senhora é "abafado" pelo silêncio que ecoa no bonde. Mas no decorrer da trama nos perguntamos: alguém fará alguma coisa para calar a boca da velha?, o Schwarzfahrer será expulso do bonde? Assistindo-se ao filme teremos esta e outras respostas.

O fim do filme, que de algum modo não deixa de ser surpreendente, nos ensina aquilo que costumamos ouvir desde crianças: não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você.

E este é apenas um reparte e amostra da ignorância que temos de lidar em nossos dias. Reflita
e boa sessão!


P.S.: Há no You Tube uma versão legendada em inglês deste filme, mas optei em colocar a versão original sem legendas pois a qualidade de imagem desta é bem superior e, como dito no início deste post, após a leitura do texto creio que será bastante compreensível a temática e a abordagem deste curta. A edição legendada pode ser vista acessando o link: Schwarzfaher com legendas em inglês.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

François Truffaut


la nuit américaine - jean-pierre léaud, jaqueline bisset et françois truffaut

assistir um 'truffaut' pode ser tão delicioso ou mais que, dependendo do dia, uma trepada ou uma barra de chocolate. todas essas coisas controlam as nossas ansiedades, mas apenas truffaut as materializa diante dos olhos para fazer-nos entendê-las. a bruteza do sexo é boa e das melhores coisas humanas que podem ser trocadas deixando-se o raciocíno à parte, misturando-o ao singelo modo de perceber a vida sem percebê-la; o chocolate nos reaviva e faz-nos buscar um 'eu' que a nossa 'criança' quer e que o nosso 'adulto' repele. truffaut junta o raciocíno, o despercebimento e o prazer e convida à nossa 'criança' e ao nosso 'adulto' a entreterem-se numa mesa de lanche ou diante de uma tela, onde os sonhos se cristalizam mutando lágrimas escorridas em fotogramas que intuirão o melhor meio de se caminhar entre os corredores de nossa casa para os quartos em que guardamos e deixamos repousar nossas vidas sobre travesseiros. a nossa essência, a nossa demência truffaut pode nos mostrar. precisou de muito ou de pouco, conforme a percepção de cada indivíduo. a sensação que nos causa um 'truffaut' é diversa, multicolorida ainda que a película seja preto & branco. nascer, assistir um tourbillon é magna; ver crescer antoine doinel é sublime, tal qual ver a nossa 'criança' crescer, subir às alturas e dizer que já está pronta para o mundo. e como truffaut nos preparou e foi tão paciente em procurar fazer com que esse mundo não fosse tão ruim assim como o vemos nos jornais, na tv e no cinema, este último sua paixão precoce.


desculpe-nos, françois, mas há tanto por que chorar e choramos ao lembrarmo-nos de películas que falam da amizade, da separação, do medo, do futuro que sempre nos permearam. e continuarão assim num movimento contínuo, qual uma regra da natureza. mas ainda será preciso um 'truffaut' para uma outra lágrima bem resolvida? advindo françois que nos tornou seus sequazes, ainda há estórias e histórias que precisam ser contadas, mostradas e assistidas, mas já não, talvez, magnânimas como as suas lentes puderam nos fazer crer e intuir. haja vida, françois. haja movimento e um som e uma canção que sintetize o turbilhão da vida em que você nos colocou.

museu imaginário de marcel proust

ce que je reproche aux jornaux, c'est de nous faire faire attention tous les jours à des choses insignifiantes, tandis que nous lisons trois ou quatre fois dans notre vie les livres où il y a des choses essentielles.

du côté de chez swann -
à la recherche du temps perdu. marcel proust - gallimard, page 36.

*

o que censuro aos jornais é fazer-nos prestar atenção todos os dias a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais.


o caminho de swann - em busca do tempo perdido. marcel proust - globo, página 48 - tradução mário quintana

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Letras chilenas

Roberto Bolaño em foto para o jornal El País (Espanha)

Há esperança para o futuro da literatura, uma esperança latino-americana, esperança chilena, mais especificamente Roberto Bolaño. Acabei de ler Noturno do Chile. E percebi o quão precioso (não consigo encontrar outro verbete como predicativo) é o escritor chileno, quão doce, lúgubre, político e essencialmente literário é Noturno do Chile.

Eu estava em paz. Agora não estou em paz. Estas palavras são de Sebastián Urrutia Lacroix, o narrador deste livro que não possui divisão em capítulos, é contínuo, como se tratasse de um relato único do padre, cuja paixão, além do sacerdócio, é a literatura e o desenvolvimento da sapiência e paixão através da crítica literária. Num monólogo, Sebastián Lacroix desenvolve as suas memórias, os seus desejos, aprendizados e experiências que vão desde o contato com Farewell, o maior crítico literário do Chile e espiar Pablo Neruda olhando para o céu fazendo poesia à dar aulas de marxismo ao general Pinochet e sua cúpula - na época do golpe militar de 1973 por Pinochet ao primeiro governo socialista eleito democraticamente na América Latina que era o de Salvador Allende.

O livro é político mas este não é necessariamente o seu viés, o livro é essencialmente literário. Quase como uma ode ao Chile e às suas letras, não só pelas memórias de Lacroix, com Neruda e outros escritores e aspirantes ao mundo das letras chilenas, mas como ele é elementar ao mostrar uma paixão de um homem pelo seu país, pela sua história, por seus símbolos e, finalmente, por sua memória que o faz mais forte e vigoroso em cada palavra enunciada sobre a vida e a experiência com seus patrícios.

Há passagens deliciosíssimas, como o encontro com Neruda na casa de Farewell, como o relato da história do escritor chileno don Salvador Reyes ao encontrar o escritor alemão Ernst Jünger em Paris na casa de um amigo guatemalteco. E há passagens de suma reflexão, quando é "convidado" a lecionar marxismo à Pinochet e quando rememora os saraus na casa da então amiga María Canales, que posteriormente será descoberta, melhor, o marido de Canales, como colaborador do regime de Pinochet. O livro não é o retrato somente da transformação de um país, mas principalmente deste processo com os seus indivíduos.

Se houver uma predisposição de tempo, é possível "traçar" o livro de uma única vez, com as suas pouco mais de 100 páginas.

É uma infelicidade muito grande Bolaño não estar mais entre nós (o escritor morreu em 2003 em decorrência de problemas no fígado), porque o mito que o cerca, e não trata-se de só mito, mas de muita coerência, o aproxima de Cortázar, Borges, Carpentier, Arlt e o que de melhor as letras hispano-americanas construíram e presentearam o mundo. Terminado Noturno do Chile tive a impressão de que lia um cânone que ainda não era, mas o será em hora que não tardará chegar.

Num artigo do jornal espanhol El País, de 2008:

(...)Bolaño ha sido condenado a la fama póstuma y a una reverencia que él mismo hubiese abominado. Antes de su muerte en 2003, era un escritor desdeñado, admirado tan sólo por sus amigos(...)

Ainda que a luz da vida de Bolaño tenha se apagado há 6 anos, ainda acredito que há esperança nas letras, na nova literatura, na jovem literatura... Que o Chile e outros países sejam testemunhas sempre do frescor da boa letra, bela, etérea e eterna.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Os teutos de novo

Outubro: conhecido no meio literário como um mês de premiações do segmento ao redor do mundo. Sem divagações, a mais esperada é a divulgação do nome do vencedor do Nobel de Literatura. Muitos ficam ansiosos e se perguntam "Quem levará dessa vez?". Tal como uma espécie de "oscar" da literatura. Mas eu não gosto deste tipo de comparação - são coisas completamente distintas. Mas quem já trabalhou com livros sabe que mesmo os mais desligados por este universo da ficção, literário, às vezes se volta a prestar atenção no nome que será divulgado pela academia sueca, pra então correr pra livraria ou pra internet pra comprar o que seria "o livro mais relevante" daquele escritor ou daquela escritora.

Nesta manhã, a Real Academia Sueca de Ciências agraciou a escritora romeno-alemã Herta Müller com o Nobel de Literatura de 2009. Ainda que o escritor deste blogue, particularmente, não tenha lido ainda nenhuma obra desta escritora, mas, como curioso e estudioso da literatura de expressão alemã, não poderia passar despercebido pelo universo que rodeia a ficção da escritora. Para Herta Müller a literatura é uma forma de redenção e de trabalhar a situação de repressão vivida quando ainda residia na Romênia, até meados dos anos 80, época da ditadura de Nicolay Ceaucescu, quando então mudou-se para a Alemanha. Um dos pilares de Herta é a vida de oprimidos, vítimas de guerra, e de pessoas perdidas em meio ao terror de um mundo que é indiferente aos seus problemas e às suas aspirações. Outros escritores, vencedores do Nobel ou não, já menearam a literatura com este viés sociológico ou libertário, casos como os de William Faulkner, Joseph Heller, Carson McCullers, Toni Morrison, Günter Grass, Alfred Döblin, Máximo Gorki, etc.

Com este prêmio, a Alemanha soma já 11 escritores laureados com o mais representativo dos prêmios concedidos no mundo da literatura - indepententemente de discussões de sua significância politica ou das relativizações de seu mérito. Torna-se o país com o maior número de "conquistas", ultrapassando os norte-americanos, que detêm 10 premiações. Pode servir como uma amostragem de quão os países investem e valorizam a formação intelectual - não obrigatoriamente, mas culturalmente - de pensamento e de discussão, sintetizada numa única palavra: EDUCAÇÃO.

É preciso ressaltar que o Nobel de Literatura também não é um prêmio dos mais justos, pois grandes escritores nunca o conquistaram, ainda que tivessem requisitos de sobra, como Marcel Proust, Juan Rulfo, James Joyce, Virginia Woolf e João Guimarães Rosa, só para citar alguns. E talvez o prêmio Nobel de Literatura não signifique quase nada, e não será um prêmio literário que alçará um país ao status quo do equilíbrio econômico e social. Não é mesmo. No entanto valorizamos como uma essência fundamental o título de País do Futebol. Título que também não nos confere melhoria nenhuma, no quesito cidadão brasileiro, e não nos traz reputação no quesito respeito e justiça com o seu povo, no âmbito mundial. Mas que é bonito é, e tem a sua significância e importância dentro da nossa cultura popular. Mas seria preferível nunca ter vencido Copa do Mundo nenhuma e ter uma justiça educacional que fizesse com que pensadores brasileiros tivessem os seus nomes gravados na história do pensamento de relevância do mundo. Temos 5 Copas do Mundo e nenhum Nobel. A Argélia, país que já viveu as desmazelas de uma guerra civil, não conquistou nehuma Copa, tem 1 escritor com o Nobel: Albert Camus; o Chile, nosso vizinho, nunca conquistou a Copa do Mundo, mas tem 2 escritores que venceram o Nobel de Literatura: Gabriela Mistral e Pablo Neruda.

E pra os que acham que é impossível concomitantemente pensar e fazer, ler e jogar, ser sério e ser feliz, a Alemanha, novamente mostra que, utilizando a analogia da literatura e do futebol, é possível, com um pouco de organização: a Alemanha é tricampeã mundial de futebol.


País que não lê, não escreve. Intão vamu superfaturá e fazê olimpíada...

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A Olímpiada que precisaríamos vencer

É encantador ver o nosso Presidente empenhado em trazer os Jogos Olímpicos para o Brasil, assim como fez para trazer a Copa do Mundo, ainda que esta segunda não lhe tenha demandado muito esforço.

Mas seria deveras encantador, e muito mais, se houvesse empenho tamanho - político e financeiro - para que houvesse uma transmutação de condição da situação de idosos, trabalhadores, atletas e também para os futuros trabalhadores, atletas e idosos: nossas crianças. Ou seja, dos Brasileiros.

Sem o objetivo de querer levantar bandeira e discurso de repúdia aos Jogos Olímpicos ou à Copa do Mundo, já que o alcance deste veículo (blogue - isso, escreve-se com e no final, porque eu quero) é pequeno, quase nulo, mas seria bom, boníssimo e encantador um Rio sem balas encontradas e sem balas perdidas; uma São Paulo sem o desarrazoado problema da poluição e sem o insistente Tietê afogado no plástico e no esgoto (desde que o blogueiro tinha 11 anos ouve que o rio será um dia limpo), e todo o resto do país com um programa de educação e sustentabilidade sério.

Há outra Olímpiada que precisaríamos vencer, ou pelo menos chegarmos no caminho de, para que pudéssemos encher o peito para falar que somos um país de primeira grandeza, como o nosso querido e popular Presidente fez questão de ressaltar, logo que o Rio foi anunciado como a sede olímpica de 2016.

Bem, a outra Olímpiada é aquela que sentimos dia-a-dia. Que parece esquecida por tanta gente, principalmente por aqueles que cuidam do dinheiro dos nossos impostos.

Gostaríamos apenas que o Brasil não fosse uma mentira, como é a China. Pequim recentemente organizou os Jogos Olímpicos, e isso não faz da China um país melhor. Podem ter desenvolvido para os Jogos uma infra-estrutura social, econômica e esportiva que aquela cidade não conhecia, mas, como um todo, a China continua a ser uma grande e dantesca mentira. Sabe-se bem as condições limítrofes de vida da grande parte da população chinesa que vive sob condições precárias, sub-humanas, e que Pequim ou Xangai, cidades desenvolvidas da grande república da Ásia, não servem de espelho para demonstrar a verdadeira China, ou aquela que acreditamos ser o espelho de seu povo. O que está bem às claras, é que o comprometimento do governo chinês na realização dos Jogos olímpicos de Pequim era nada mais do que uma "propaganda" transliterada de um país que economicamente galopa para galgar o posto mais alto da economia mundial. E propaganda não é novidade no que diz respeito ao cerne olímpico, basta revisar a história e verificar que os Jogos de 1936, de Berlim, tentou ser utilizado por Hitler como propagação das ideias nazistas, ainda que não tenha logrado o sucesso esperado, e este fracasso é sintetizado pela imagem do atleta negro Jesse Owens que desbancou a chamada "raça superior" ou "ariana" de Hitler, nas Olímpiadas de Berlim.

Portanto, tudo o que Brasil não precisa é de propaganda, porque quem vive neste país não se vê representado naquele vídeo maquiado que o Comitê Olímpico Brasileiro utilizou para "emocionar" os delegados do COI, e todos aqueles que assistiam à apresentação. Ali se vê uma Rio de Janeiro límpida, colorida e encantadora. Este Rio já existiu, hoje não mais. O fato é que teremos um evento de alta magnitude dentro de pouco mais de 6 anos. E nós, brasileiros, gostaríamos de que as Olimpíadas, como a história nos mostra, não fossem, mais uma vez, realizadas como um disfarce e maquiagem; uma rele propaganda de um país, para fazer média com o mundo para conquistar objetivos meramente estratégicos e geopolíticos que nem sempre coincidem com a melhoria e o bem-estar de sua população, como, por exemplo, uma cadeira permanente no conselho de segurança da ONU, para gabar-se de uma pseudo-importância no cenário mundial, e no entanto não cumpre com os mais elementares deveres de casa, que é a atenção, segurança e o cuidado aos que formam esta nação: toda a população. Chega de rímel e de pó-de-arroz para mascarar falta de propostas , de solução, ou falta de vontade em encarar os nossos problemas históricos, coloniais, estes, sim, muito elementares.

Enfim, este texto era para ser apenas um pequeno parágrafo que serviria de introdução à reprodução do texto de Clóvis Rossi, publicado hoje - 5/10 - na sua coluna Janela Para o Mundo, no Folha Online, que aborda aquela Olimpíada que precisaríamos vencer. Na verdade, precisamos - pelo menos deveria ser entendido assim, como uma obrigação, como meta para trabalharmos melhor essa dignidade que tanto buscamos que é a ideia de sermos Brasileiros, apesar do Brasil.


*********


A Olimpíada que perdemos. Sempre

Clóvis Rossi



Não deixa de ser pedagógico o fato de as Nações Unidas terem divulgado o seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) apenas 48 horas depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter decretado que o Brasil passara a ser um país de "primeira classe", porque o Rio fora escolhido para sede da Olimpíada de 2016.


Não, presidente, o Brasil é de 75ª classe, a sua classificação no IDH, vexatória como sempre.

Aliás, toda vez que sai um ranking internacional que mede algum aspecto do desenvolvimento humano, o Brasil passa vergonha.

Ficou, desta vez, quase empatado com a Bósnia-Herzegovina. Ajuda-memória: a Bósnia-Herzegovina é aquele pedaço da antiga Iugoslávia que passou faz pouco menos de 20 anos por um genocídio --e nada é mais devastador para o desenvolvimento humano que uma guerra como aquela.

O Brasil, ao contrário, não tem uma guerra desse tipo desde a do Paraguai, no remoto século 19. Não obstante, empaca no desenvolvimento humano desde sempre.

O que torna ainda mais desagradável o resultado é o fato de que, nos 15 anos mais recentes, o país teve dois governos de eficiência acima do padrão usual e de proclamadas intenções sociais --algumas realizadas, outras nem tanto ou nada.

O Brasil de fato passou a ter, nos últimos anos, um peso internacional inédito na sua história, mas o IDH só dá total razão ao que escrevi domingo, para a Folha: "Nada de perder a perspectiva: os que fizeram a viagem [rumo à primeira classe] são poucos, pouquíssimos políticos, um bom número de diplomatas e funcionários públicos graduados, um número crescente mas ainda pequeno de empresários. É uma vanguarda que, se olhar para trás, verá que a grande massa ainda come poeira".

A ONU assinou embaixo. E de quebra desmontou a falácia dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) como as grandes potências de um futuro próximo. A Rússia ficou pouco acima do Brasil, no 71º lugar; a China, bem abaixo, no 92º. A Índia, então, é de terceira classe no capítulo desenvolvimento humano (134º posto).

Fonte: Folha Online

domingo, 4 de outubro de 2009

O fim da filosofia e o bovarismo de Nietzsche

O Übermensch (Super-homem) e o fim da Igreja. A contradição entre Cristo e Igreja é ao que nos envereda o zoroatrismo. Nietzsche: quiseram anulá-lo associando-o ao nazismo. Ignorar o caminho positivo do Übermensch ou das palavras emprestadas à travestida ficcionalidade de Zaratustra. Mas era muito tarde, Nietzsche já estava louco, e desprezava tudo aquilo. Havia comiseração àquele silêncio. Deus está morto.

A literatura, a psicanálise e a loucura de Nietzsche.


Na Primeira Parte, Capítulo V, de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, há uma das cenas mais fortes e emblemáticas do romance. Raskólnikov sonha com a sua infância. Sonha com um açoite descabido que assistira de uma égua. Uma égua pangaré que carregava uma telega (carroça) desproporcional ao seu porte e tamanho, como reproduz a passagem do livro:

(...)E eis o seu sonho: está indo com o pai pela estrada que leva ao cemitério e passam ao lado da taberna; ele segura a mão do pai e olha apavorado para a taberna. Uma circunstância especial lhe chama a atenção: desta feita é como se ali houvesse uma festa, com um bando de pequeno-burgueses empetecados, camponesas com seus maridos, e toda uma gentalha misturada. Todos estão bêbados, cantando, e ao lado do terraço da taberna há uma telega, mas uma telega estranha. É uma daquelas telegas grandes às quais se atrelam grandes cavalos de carroça e em que se transportam mercadorias e barris de vinho. Ele sempre gostou de ficar olhando para esses enormes cavalos de carroça, de crinas longas, patas grossas, que caminham com tranquilidade, a passos cadenciados, e arrastam uma verdadeira montanha sem um mínimo de esforço, como se lhes fosse mais fácil andar puxando cargas que sem elas. Mas agora, coisa estranha, na telega grande há uma pangaré camponesa baia, pequena, em pele e osso, daquelas que ele via frequentemente e vez por outra se arrebentavam com alguma carga alta de lenha ou feno, principalmente se a carga encalhava na lama ou numa trilha deixada por rodas de carroça, e aí os mujiques sempre as chicoteavam de modo tão dolorido, tão dolorido, às vezes em pleno focinho e nos olhos, que ele ficava com tanta pena, tanta pena de assistir àquilo que por pouco não chorava, e a mãe sempre o retirava da janela.(...)¹

Logo depois, há a deplorável execração da pequena égua praticada no lombo, provocada pelos vagabundos, pequeno-burgueses, como o próprio autor os denomina, simplesmente por ela não ter forças para carregar aquela gente, aquela carga:

(...)- Açoitem até matar! - grita Mikolka - Já que se começou. Vou açoitar até matar!(...)

(...)- Onde já se viu uma eguinha como essa puxar uma carga desse tamanho! - acrescenta outro.(...)

-Não se metam! É um bem meu! Faço o que quiser. Senta mais gente! Senta todos! Quero que ela saia de todo jeito galopando!...(...)²

Após matarem a égua, o menino Ralskolnikóv perde o controle:

(...)Mas o menino está fora de si. Com um grito abre caminho entre a turba na direção da baiazinha, abraça-lhe o focinho morto, ensanguentado, e a beija, beija-a nos olhos, nos beiços... Depois dá um salto de repente e tomado de fúria investe de punhozinhos cerrados contra Mikolka.(...)³

Onde entra a loucura de Nietzsche? E a Psicanálise? Pois bem, não é novidade que Nietzsche já adiantara, muito antes do desenvolvimento dos estudos freudianos, que Dostoiévski, para ele, era o primeiro e maior psicanalista. Para ele, Dostoiévski, através das páginas naturalistas de Memórias do Subsolo, Crime e Castigo e Irmãos Karamázov investigou a consciência humana e a explicitou, como uma desrazão.

Ao ler Formas Breves, de Ricardo Piglia, revejo a cena de Crime e Castigo e a associação dela com o fim da filosofia e a loucura de Nietzsche - especificamente no capítulo Notas sobre literatura em um Diário:

SEGUNDA-FEIRA

Uma das cenas mais famosas da história da filosofia é um efeito do poder da literatura. Nietzsche, ao ver como um cocheiro castigava brutalmente um cavalo caído, abraça-se chorando ao pescoço do animal e o beija. Foi em Turim, em 3 de janeiro de 1888, e essa data marca, em certo sentido, o fim da filosofia: com esse fato começa a chamada loucura de Nietzsche, que, tal como o suicídio de Socrates, é um acontecimento inesquecível na história da razão ocidental. O incrível é que a cena é uma repetição literal de uma situação de Crime e Castigo de Dostoiévski (parte I, capítulo 5), na qual Raskólnikov sonha com uns camponeses bêbados que batem num cavalo até matá-lo. Dominado pela compaixão, Raskólnikov se abraça ao pescoço do animal caído e o beija. Ninguém parece ter reparado no bovarismo de Nietzsche, que repete uma cena lida. (A teoria do Eterno Retorno pode ser vista como uma descrição do efeito de falsa memória que a leitura produz).4

A partir dali, era o fim de Nietzsche. Dostoiévski poderia ter sido este Super-Homem, mas desistiu porque preferiu unir-se a outros cuja filosofia era outra, ou que pelo menos não dispunham de um pensamento que provocasse a mobilização do espírito humano? Difícil saber. Nietzsche morreu e Freud postulou a contrariedade intrínseca dos indivíduos, do homem, em 1930, em O Mal-Estar na Civilização. Para Freud, ser e pensar não são coincidentes, e posteriormente Lacan apenas reafirmou esta ideia.

E hoje não há como ignorar a loucura de Zaratustra e a serenidade pertubadora de Raskólnikov. Por mais que neguemos, estes nos mostram que somos todos ambíguos tentando, todo o tempo, sem nos darmos conta, fugir de nós mesmos, mas acreditando ser portadores da absoluta verdade e transparência, que já sabemos, que não existe. Não percebemos nada disso porque, de algum modo, nossa consciência está presa em um subsolo, e haja inconsciência para saber disso.


Bibliografia

1
, 2 e 3 - DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000 (tradução de Paulo Bezerra);

4 - PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Cia. das Letras, 2004 (tradução de José Marcos Mariani de Macedo)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A Língua

Poema extraído do livro Poesias, de Olavo Bilac
Língua Portuguesa
Olavo Bilac
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

****************
Texto extraído do Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, de Fernando Pessoa.
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa . Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

*****************
Texto de quem escreve no blogue
A língua mais bonita é a portuguesa. É a língua que eu falo, escrevo e peço um café na padaria. E não à toa, é de se ver que aqui, neste país do hemisfério sul, a cena do português é tão mais bonita e interessante que a scene da outra língua. Mesmo a scene da outra língua tem um c, que não podemos deixar de grafar quando quisermos escrevê-la, portanto há c tanto em cena como em scene.
Mas há "um" sena interessante (assim, sem o c): o rio que banha a cidade de Paris, conhecido em outra língua como la Seine.

Entre cenas, eu sou um operário e apaixonado pela língua (a portuguesa), pois foi neste idioma que aprendi os primeiros sons e cresci. E não convinha ser diferente, eu não fui alfabetizado em outra língua.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Crer no incrível

Estou cercado por lepitópis. Vejo um pequeno, branco, logo a minha frente; um logo a leste; dois a oeste; um a sudoeste; e outro a noroeste. Agora percebo outro mais adiante e outro a duas filas a oeste. E agora, que viro a cabeça para trás, vejo um outro lá mais ao fundo. Uns chegando, outros indo. Ações num gerúndio profuso. Na falta de um béquispeice, utilizo a minha borracha ponteira para apagar uma letra, uma palavra que não coube, por questões mais semânticas que sintáticas. Subesisto no mundo da digitalidade contínua. Não há teclas de espaço no meu espaço. Há um espaço metalúrgico, um madeireiro e um seringueiro. Apontador, lápis e borracha. Um papel. E o papel, sim, a tábua, a minha tela. O progresso tão perto, tão longe. Tão fácil, tão difícil. A insubstituível caligrafia grunhe ao qwertyuiop. A borracha borra o grafite no que não deveria ter sido escrito. O borro como uma cicatriz, um acidente no texto. Um borrão alegre como lembrança de uma inadequação. O meu polegar e o meu indicador fazendo as vezes do Ctrl e do Alt ao virar das páginas. Há pautas.

Estou numa biblioteca, a qual alguns já denominaram universo. Aqui, em latitudes diferentes, pontos luminosos de cristal líquido e livros se alternam. Não vejo nada aqui que se assemelhe ao que chamam de cosmo, a não ser um barulho disfarçado de silêncio. Não é ficção, nem metáfora ou memória. É só o insustentável modo de tentar compreender o que não se é. E quantos lepitópis por aí... Meu lápis, meu caderno e minha borracha são um trio bom, ainda que ideia nenhuma rascunhada no papel acenda uma lâmpada ou me transforme num cidadão do mundo. Mas dá-me liberdade.

Aqui sou apenas o usuário da biblioteca que investiga o seu redor, o que não faz de mim melhor. Por que não? Estou escrevendo e sentindo em alguns momentos que não deveria ter entrado na biblioteca. Mas entrei. Acreditei nos universos, nos lápis e nem tanto nos lepitópis. Me fiz crer no incrível - nestas três simulações da vida.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Porter

From This Moment On - canção de 1951 composta por Cole Porter para o musical Out of This World.

Tantos já a gravaram, mas a ouço repetidamente na VOZ de Frank Sinatra, no álbum Frank Sinatra Sings - The Select Cole Porter .

Gosto dos versos

"No more blue songs
Only hoop-dee-doo songs"


Antecedidos por um dia feliz

"From this happy day"


Aqui, logo abaixo, a letra toda todinha


From This Moment On


From this moment on
You for me, dear
Only two for tea, dear
From this moment on

From this happy day
No more blue songs
Only hoop-dee-doo songs
From this moment on

For you've got the love I need so much
You've got the skin that I love to touch
Got the arms to hold me tight
Got those sweet lips to kiss me goodnight

From this moment on
You and I, babe
We'll be ridin' high, babe
Every care is gone
From this moment on

From this moment on
You for me, dear
Only two for tea, dear
From this moment on

From, from this happy day
No more blue songs
Only hoop-dee-doo songs
From this moment on

For you've got the love that I need so much
Yeah, you've got the kind of skin that I love to touch
And you've got the arms that can hold me tight
You've got those lovely lips just to kiss me goodnight

From this moment on
You and I, babe
We'll be ridin' high, babe
Every one of our cares are gone
From this moment
From this very moment
From this moment on

Rilke

Sage mir, Vogel, landest du stets
dort, wo das Herz dich hinträgt?
Täuschst du dich niemals,
fügst dich niemals dem Winde?
Ich gehe auf diesen Flügeln
der Seele oft sehr ängstlich
Jener unbeschäftigte Engel
eines herauf Richtung Himmel
schlafenden Mädchens, er bringt mir
wieder mein Herz.

Rainer Maria Hilke,
August 1924


Tradução livre do poema de quem escreve neste blogue:

Conte-me, pássaro, onde pousará
onde sempre o coração o levará?
Nunca te enganas,
nunca renuncias ao vento?
Eu sigo sobre estas asas
da alma sempre muito inquieta
deste anjo desocupado
que ruma ao céu
menina adormecida, que ele me traga
novamente o meu coração.

Rainer Maria Rilke,
Agosto 1924

domingo, 13 de setembro de 2009

Glicerina

Silence is all we dread.
There's Ransom in a Voice -
But Silence is Infinity.
Himself have not a face.

Emily Dickinson


Eu lavo a saboneteira tirando dela os restos de outros sabonetes, restos de água e de outros detritos, para deixá-la pronta para o novo sabonete de glicerina que comprei. Estou sob a água do chuveiro enquanto a limpo para o novo sabonete. A água escorre pelos cabelos, desliza no pescoço, torso e partes íntimas e descem perfumando todo o meu corpo com os rastros do perfume glicerinado do sabonete, condensando na espuma uma espécie de paz que espalho pelo corpo.

A tarde é bonita. Há um sol vigoroso lá fora. Vejo tudo da janela do banheiro, ainda que não dê para ver muito. E sinto um sol bom. O dia é bonito. Vi um filme com fotolitos de um país bonito. Acho que não era o meu. E eu queria passar a tarde limpando a saboneteira, lavando o meu corpo e deixar que a figura do sol se resumisse aos rabiscos entre águas que sobravam de fora para dentro através da pequena janela do banheiro. Eu sabia que poderia, se quisesse, ter mais.

Acabo o banho, com o prazer de ter trazido a mim, com a água e com o perfume, o sossego de que precisava, apesar das preocupações não terem sido escoadas pelo ralo como a espuma muito branca e cheirosa do sabonete de glicerina que comprei.

Aquele país do filme parece estar longe, se é que existe. Mas existe. Eu sei porque eu já ouvi falar dele, daquelas cores, daquela música.

Seco o cabelo, os olhos daquela paisagem, a do filme e a da janela do banheiro. Com a toalha e um suspiro fundo, longe. Um pouco de azul e branco mesclados a um amarelo tranquilizante, de um tom 'maracujá', é o tom da paisagem, do filme, da minha imagem numa esquina de uma história não fantástica, mas de uma força muito azul, muito branca e de um amarelo-maracujá, dão-me sono, olhos bem abertos para o lado de 'lá'. E eu nem percebi que já estava jogado sobre a cama, sobre o edredom amarfanhado que me cobre já há tantos sonos.

Preciso de uma música de dentro para acalmar o que está fora.

Puxo a cadeira. Sento um pouco. Pego o telefone para dizer para alguém como me sinto bem, e o quanto me falta. Mas não, não é assim. Ninguém precisa ouvir isso. Eu não preciso dizer, por isso eu quero pensar no país bonito e naqueles fotolitos que de alguma maneira me fazem acreditar em outras possibilidades que não só aquela da janela do banheiro. Como o sol imensamente pode ser mais quente, mais...

É suave a água escorrer assim. Sinto um cheiro bom que fica na minha pele por algumas horas, talvez até o próximo enxague. A glicerina menos rude com a fragrância. A esperança menos rude com o dia.

Sentei para pensar, para escrever e não consegui. Não consegui misturar o cheiro às imagens com algum texto que poderia ter escrito. Não pude ou talvez não quis.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Os começos são muitos

Os começos são muitos. Necessários. Sem eles não há um fim. Um viés, uma razão. Nossos começos existiram para que pudéssemos então existir. Somos livres, partindo-se do princípio, do arbítrio que nos foi dado, como as teses são mesmo de liberdade. Para as razões há um porquê de começar para ser, razoar e perecer. E se ainda não começamos?
Convencemo-nos diariamente de que somos de uma matéria impetrável e indestutível de rudezas. Mas, na lucidez, sabemos e não ignoramos o quão parcos somos, e dessa rudeza não nos damos conta na maioria do tempo, pois a vida é algo como não ter lucidez. Aparte disso, há de começar a viver. 'Hei de viver.' 'Hei de ser reavivado nas memórias de quem conheci.' E se não temos esperança?
Soletramos discórdia, sim. Manejamos armas, sim. Soerguemos lamúrias, sim. Mas o etéreo está na imaginação do que é 'simples', do que é 'comum', o que não somos, quase sempre. Ser 'um' das desadivinhações. E ocupar-se em atentar ao cheiro do bosque de bétulas e das sâmaras espargidas pelo chão, ainda que o nosso bairro não tenha bétulas, num clima abafado em que aguardamos o gosto da chuva, e também o cheiro dela, da água que cai misericordiamente. É o queixume da chuva que bate no telhado e ecoa em alguma poça do quintal, dos quintais. E se não temos quintal?
Um texto de começo, outro de pensamento, outro de fim. Para razoar, outra vez, as nossas conjurações horárias, diárias. E se não há tempo?
Tudo começou e outra vez terminou. Estamos num átimo entre o precipício do princípio e da afinidade com os fins. Estamos juntos no mesmo mundo, na mesma entoada. E queremos saber como estamos, quem abençoamos e como vivemos. Num novo começo para principiar o fim. Os começos necessários são muitos. Sem um fim não há 'eles'. Livres somos partindo-se do arbítrio do princípio. Para uma razão há várias razões e sem elas não éramos? Não existiríamos.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Os infinitos hexágonos que constituem o mundo


Decifre o texto ou lhe tiro a vida! Decifre a vida ou lhe tiro o texto!
Quais são os hexágonos - estes em números insondáveis, por isto infinitos - que fazem do mundo "mundo"? Um mundo inexclamável, que não deveria ser destacado num arranjo ortográfico entre aspas, pois as aspas são uma espécie de raspas de letra, não são? Uma espécie de cedilhas inutilizados, pois há tão poucos "c" para tantos cedilhas, aí, nesta infinitude de sinais, símbolos, arranjaram um emprego para utilização destas sobras, raspas ortográficas que são as " ".
E já são infinitos os códigos e por isso não há outra razão de ser assim também o mundo.
Se vão, levem-me então. Levem-me para que eu seja levado leve. (Grifo meu)
O mundo é uma biblioteca infinita ou a biblioteca é um mundo infinito? O que pode nos esclarecer as nossas letras, pontos, vírgulas, reticências, exclamações, números, algaritmos e as infinitas combinações entre os mesmos? Tudo ou nada...
"Nada" me faz lembrar o "Tudo" que há para ser preenchido ou o "Nada" pré-existente. Decifro as moscas que andam sobre a laranja, a ruína porque andei onde batem as ondas, as pedras que chutei que cortavam o caminho, ou os caminhos. Tudo está descrito e explanado nos infinitos hexágonos que fazem disto um mundo que possibilite a esfera de um outro mundo extinto que coexistiu paralelamente à metafísica desse nosso outro mundo, que acostumamos identificá-lo nos sonhos espessos que se abrem, vez ou outra, para o que entendemos de "mundo real". E nada disso é sonho. Nada mais além de "arranjos ortográficos".


"...La Biblioteca existe ab alterno. De esa verdad cuyo colorario inmediato es la eternidad futura del mundo, ninguna mente razonable puede dudar. El hombre, el imperfecto bibliotecario, puede ser obra del azar o de los demiurgos malévolos; el universo, con su elegante dotación de anaqueles, de tomos enigmáticos, de infatigables escaleras para el viajero y de letrinas para el bibliotecario sentado, sólo puede ser obra de un dios. Para percibir la distancia que hay entre lo divino y lo humano, basta comparar estos rudos símbolos trémulos que mi falible mano garabatea en la tapa de un libro, con las letras orgánicas del interior: puntuales, delicadas, negrísimas, inimitablemente simétricas." (A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, em Ficções (1941))

domingo, 6 de setembro de 2009

De Bota pra Copa

foto: arquivo pessoal

Baía de Guanabara, que para Levi-Strauss parecia uma boca banguela, num pôr-do-sol de junho de 2009



Desembarcávamos na praia de Botafogo numa manhã de insucessos, indescansável. (Como eu queria agora uma escrita mais corrente sem precisar usar sufixos como "in", sinônimos, não incerto, de infelicidade.) Mas havia uma vontade muito grande do descanso, da manhã descansável. E como era ruidosa a paciência que temia nos dominar, ficamos então dominados pela impaciência. O alojamento não havia recebido a nossa confirmação de reserva. "Que reserva?" O albergue era "lindo" o que não nos causaria surpresa se ali estivessem hospedados alguns belos senhores da família
Muridae. Fomos atendidos por um dos administradores gringos da estalagem, quase sob a escuridão, parecia-nos proibido o acendimento das luzes para atender educamente hóspedes que chegam para ocupar os aposentos. Não sei a razão. Por que pagaríamos por "tudo" aquilo? Mas não pagaríamos mais, graças as intervenções divinas que não fizeram chegar a eles o nosso e-mail de confirmação da muquifa reserva. E não havia mais vaga. Graças! Ah, muito melhor assim seria. Com poucas pilas no bolso, teríamos de nos revirar para encontrar outro lugar para dormir, tentar um dia descansável.

Raivosos pela insolência sofrida, saímos andando por Botafogo enquanto pensávamos no que seria, no que poderia, no que viria, no que não será, no que não poderá e no que não virá. As insistentes ponderações de grana nos martelavam a cabeça. Procurar um hotel, um outro alojamento, outro hostel, outro albergue, outra pousada, outro quarto, outro abrigo, quando àquela hora já um tapume de madeira que nos protegesse da maresia, do som periódico da avenida e do barulho dos carros, e onde poderia nos proteger de uma chuva fina, tal tapume seria de infinitas estrelas.

E não sei porque razão havíamos entrado na São Clemente, o que me fez lembrar do
Balé do Pato em Botafogo, de um dos mineiros mais cariocas, Paulo Mendes Campos, que narra, dentre outras, um fato com o salva-vidas que testemunha, por força de macumba pra ter o marido de volta, uma francesa indo a um aviário, que ficava ali no comecinho da São Clemente, pra comprar um pato branco pra soltá-lo na praia. Se o pato seguisse pela baía, o marido voltaria; se o pato voltasse, saísse da água, o marido não voltaria mais. Mas Alexandrino, o salva-vidas, não perderia tempo, lógico. Quando a madame fosse embora nadaria até o pato, e como pediria posteriormente à patroa para cozinhá-lo ao molho pardo.

Alguns acreditam em destino, eu acredito em travesseiro. Pois era só naquilo que eu queria acreditar. Mas seja o destino ou a atração definitiva por uma cabeceira no miolo de Copacabana, acabamos por parar a uns quarteirões do Copacabana Palace. Estávamos tão perto e tão longe do hotel das estrelas. Mas estrela de verdade era brilhar seis andares sobre a avenida Nossa Senhora de Copacabana e ouvir o murmurinho do Rio de Janeiro. As saliências cariocas. As desmedidas fluminenses. Não era à toa. Recordava-me de outros acepipes, sobre aquela mesma e eterna Copacabana. Esses dias são as matizes de sonhos. Poderia pensar? Não. Definitivamente, não. Exclamávamos que não poderíamos pensar. Deixemos que os poderes astrais que nos levaram incontinentis pelas calçadas da zona sul nos fizessem enfim sobre o pé do céu dormitar por algumas horinhas apenas, e que a insônia paulistana fosse insuflada de uma tomada de ar quando no caminho das arestas sem fim do hedonismo carioca.

A Botafogo dos planos convaleceu-se à pequena e larga história do dormitório copacabaniano, ou copacabanense, ou copacabanês. Há tantos houvera tantos. Lembrança de chuva, de mar, de nuvem. E quantas nuvens...

Mas sobrava sol. E foi tudo tanto assim tão. Para nós. A leveza suja de Botafogo valorizou a enorme e mascarada Copacabana. Terminando igualmente igual num outro texto em que de original não há nada senão ser o próprio palimpsesto de um outro, de uma outra lembrança, outra viga do tempo e da memória, no caminhar vadio, alegre, de Botafogo à Copacabana.

sábado, 22 de agosto de 2009

A polifonia de William Faulkner

William Faulkner, em foto de 1947

"Do outro lado da cerca, pelos espaços entre as flores curvas, eles estavam tacando."¹

Esta é a primeira frase de um dos principais romances de William Faulkner, O Som e a Fúria (1929). A voz que narra uma brincadeira, um jogo de beisebol, é a do personagem Benjamin, o Benjy. Nas palavras de Luster - neto da negra Dilsey, empregada da família - Benjy é "bobo". Benjy possui retardamento mental, tem 33 anos, e é a voz dele que primeiro ecoa para apresentar-nos o universo dos Compson, família do sul dos Estados Unidos que, como muitas, experimentam o dissabor da desagregação, do ódio, do esquecimento e da desfacelação do sentimento que houvera num passado remoto, o princípio do que entendemos ser uma "família".

Benjy é quem primeiro dá voz aos estilhaços da família Compson, formada pelos irmãos - além do próprio Benjy - por Candace (Caddy), Quentin e Jason; pelos pais Caroline e Jason; por Quentin - filha de Caddy; por Dilsey - a empregada, os filhos, e Luster.

O Som e a Fúria é dividido em quatro partes, e em cada uma delas a história se estabelece sob o ponto de vista de uma personagem. O único capítulo narrado em terceira pessoa é o quarto, o que tem a perspectiva de Dilsey, a negra, que mora com os Compson e trabalha para eles - como muitas vezes é lembrada, principalmente por Jason. Dilsey não narra sua história, pois há um narrador onisciente que preza por notar a vida de Dilsey entre os Compson, as angústias, as rotinas e, principalmente, as limitações impostas por uma fé de que os negros são apenas negros e devem apenas servir. Esta visão política e unilateral é bem nítida nas ações de Jason, o Compson sádico, calculista e, invariavelmente, temido por quase todos. Sentimento de temor que se aguça quando Jason Pai morre, e resta a Jason Filho a tarefa de ser o "homem da casa".

Os três primeiros capítulos são narrados, nessa ordem, por Benjy, Quentin e Jason.

Benjy, como já informado, é deficiente mental; Quentin é o Compson que poderia ter dado certo, pois um lote das terras dos Compsons (especificamente a parte que pertencia a Benjy) é vendida pelos pais para financiar os seus estudos em Harvard, mas, já na universidade, Quentin suicida-se, motivado pelo amor impossível por Caddy, sua irmã; Jason é o irmão autoritário, frio e trapaceador, que não medirá esforços para conseguir controle sobre a família e travará um duelo especial com a sobrinha, filha de Caddy, Quentin.

Através de todas essas vozes, Faulkner se utilizará de um expediente que se tornou uma marca de sua obra: enxurradas de fluxo de consciência, flashbacks e um emaranhado polifônico que costuma engendrar as múltiplas vozes de seus romances. Semelhanças de estilo de O Som e a Fúria podem ser encontradas em outros romances do autor, como Sartoris (1929), Enquanto Agonizo (1930), Luz em Agosto (1932), Absalão, Absalão! (1936) e Palmeiras Selvagens (1939).

Faulkner é normalmente tido como um escritor difícil, de linguagem muito intrincada, o que restringiria, em tese, o entendimento e a fruição dos seus romances. Não espere em Faulkner uma narrativa cristalina, heróica e vitoriana de um Walter Scott. Portanto, quanto à linguagem, é fácil observar, na leitura de cinco páginas de qualquer um de seus romances, o obstáculo a ser transposto. No entanto, a percepção deste "problema" será um dos principais ingredientes para que a leitura de Faulkner não seja um meio de nos desligar de um universo em plena ferveção, mas, sim, o processo de nos reconectarmos a este universo, sobre um prisma que, não fosse o agônico de Faulkner, não teríamos a dimensão de quão longe estamos de entender o que de fato nos constitui e alimenta os nossos desejos, amplificados por este universo que estudamos, vez ou outra, nos desligar. Portanto, a correnteza que nos levará a correr pelas páginas de William Faulkner é justamente espelhos estilhaçados utilizados como lúdicos quebra-cabeças; sendo que e a solução e a junção destes estilhaços é o que nos empurra na leitura para saber, e se haverá, alguma solução.

Estas vozes, estes consonantes disparos vocabulares saindo de todos os lados seguindo para todos os cantos apontam o que já sabemos na vida cotidiana: que a vida não constitui-se de um único ponto de vista: o NOSSO, mas de uma gama inclassificável de pessoas e de sentimentos que fazem com que o mundo incompreensível seja, se não solucionado, ao menos auscultado, já que em um tribunal justo para uma sentença justa é preciso ouvir a todos: réus, vítimas, testemunhas, advogados e promotores. Nas letras de Faulkner, o juíz é o leitor, somos nós. Mas a teia de suas palavras mostra-se, muitas vezes, deveras emaranhada, que não sabemos mesmo ao final do livro, se realmente, como leitores somos os juízes, ou novas vítimas deste complexo sistema de luzes e sombras que move-se sobre o universo do escritor norte-americano. Conforme o resultado, podemos sentir-nos réus, verdadeiros responsáveis pelas indissoluções e pelo reavivamento das tragédias, letra a letra, de um livro, de histórias que poderiam muito bem ser as nossas.



1
- O Som e a Fúria, página 5 (tradução de Paulo Henriques Britto - Cosac Naify, 2004)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Os escritos do papel

Se multiplicam, infinitamente, os meios de comunicação nessa era, que não me submeto a nomear. Já há tantos nomes e predicativos, e não me preocupo com eles. Nesses dias (dessa era) é quase impossível não saber sobre as coisas, ainda que, incidentalmente, a quantidade de todas as coisas cresce inversamente proporcional à qualidade e, melhor, à credibilidade.

Os artigos e conteúdos dos zilhões de sites, blogs - a tal da "blogosfera" - são em bilhares, e pressupõem um espírito muito crítico e cuidadoso para consumi-los e absorvê-los. Nesses não há nenhuma garantia de que o que é informado é mesmo verdade, ou se o conteúdo-informação é saudável para os cerébros-destino que ousarão processá-los. Estes tempos dos celulares "liquidificadores" que, se duvidar, fazem até vitamina, tal é o tamanho de recursos que congestionaram nesse aparelho, requer dúvida e mais questionamento sobre as coisas que possamos extrair deste pequeno aparelho. Não será nenhuma surpresa um desses que possa coar café ou tostar um pão - alguns já se parecem mesmo com tostadeira. O celular era para ser, primeiramente, uma alternativa e bem prática para se dizer um "oi" e outras coisas diversas, à distância, sem ter que estar em casa ou no trabalho, dependente daquele fio que vai no plugue para viabilizar as comunicações pelos arredores que o mundo convencionou chamar de "mundo".

Esta revolução é muito mais antiga do que costumamos pensar. O homem sempre foi imperialista e nunca conformou-se com seu aparte do mundo, quando, até antes das navegações, descobriu que havia um universo borbulhando longe de sua visão, do alcance do seu poder animal e transformador. As conquistas de território, desde os helênicos tempos, dos matizes alexandrinos, já instituía-se como uma forma de o homem poder abarcar o que, num primeiro instante, não se podia, por deveras grande que era aquela porção de terra imersa no espaço que não se sabia ainda ser plana ou redonda (ainda não sabemos). O sentimento de império, hoje, está estritamente ligado às informações, e como essas percorrem e alcançam o mundo. É o império da palavra, melhor, da mídia eletrônica, meio "virtual" (palavra já tão batida, mas necessária) que toca bilhões de pessoas, num segundo, num átimo. E isso pode funcionar muito bem para todos, inclusive para mim e para você.

Mas, apesar de tudo isso, ainda fico reticente com muito que é veiculado pelos meios que não são os físicos, táteis. Como se a infinitude de códigos binários que metamorfoseiam-se em holografias que servem de meio para que eu escreva estas palavras e as disponibilize para um número infinito de pessoas pela internet, fossem, por algum motivo, mais vulneráveis a mentira. Há uma autenticidade (discutível, claro) nos telegramas, nas cartas, nos diários, nos papéis, nos livros, que parece difícil para um blog, um celular, um portal na internet alcançarem. Que sejam louvados todos os meios que absorvem as vozes do mundo; as palavras precisam ser semeadas; e a internet e outras mídias eletrônicas têm sido inigualáveis nisso.

Muito foi produzido antes da revolução tecnológica, e muito disso foi registrado em papéis. Muita mentira foi autenticada em cartório, portanto os meios de comunicação que identifiquei como "táteis" não são menos sucetíveis à mentira.

Acontece que, para um antigo como eu, por mais mentirosa que seja uma carta, ela se compõe, do que denomino "síntese de existência", coisa que a mais verdadeira e bela das mensagens eletrônicas não possui. Na carta ainda é possível sentir a textura e o relevo da esferográfica, e até o cheiro. Sentir o amasso produzido pelos caminhos percorridos até chegar ao seu remetente. O e-mail é um conjunto infinito de sequências lógicas e matemáticas transcritos por um processador, a partir de um software, a partir de um servidor, e por este segundo, enviado por meio de impulsos elétricos, irrealizáveis e inimagináveis, até a "caixa de entrada" do destinatário.

Há também zilhões de livros publicados, bilhetinhos deixados em porta de geladeira, e para todos também é preciso, como para os conteúdos virtuais, cuidado e atenção para a digestão destas mensagens e informações. Mas a "síntese de existência" destes materiais, os fazem mortais. Se eu não gostar de um livro, de uma carta, de um bilhete, posso rasgá-los, posso queimá-los, e saberei que aqueles objetos foram destruídos de fato, porque são "objetos". E-mails, SMS e sites não são objetos. E, por si, são mais ordinários, mesmo que mais velozes que um pombo correio. De algum modo, indestrutíveís. Se eu jogo uma mensagem indesejada na minha "lixeira eletrônica" será que ela deixou realmente de existir?

Nesta multiplicação infinita das comunicações é preciso aprender que estamos num "mundo de mentira" se fazendo de um "mundo real". Entender isso é um caminho para que eu e você não nos entreguemos incondicionalmente à primeira carta e não desistamos dos e-mails. Os e-mails são informativos e velozes; os sites, coloridíssimos e cheios de imagem; mas cartas, bilhetes e diários EXISTEM.

sábado, 8 de agosto de 2009

O sr. Café e os pássaros

Era mais uma daquelas manhãs outonais, quando o sol finge que esquenta o dia e nos fazemos acreditar que isso é verdade. Mas era, no entanto, um dia de sol. O vento silvava entre as copas debutantes e flácidas das árvores que ladeavam a rua em que morava o sr. Café. Um nome estranho para uma pessoa estranha. O sr. Café era um homem de seus quarenta anos, mas parecia mais, mais. Espírito sisudo, semblante carregado que em nada era atenuado pelo bigode cultivado com certo afinco e vaidade. Com seu rigor tentava manipular ao redor, o preciso raio de notável um metro em que poderia agir, persuadir ou descolorir o tema vez alegre de alguém, de algum.

Sr. Café e sua calva cabeleira, testa larga, bochechas tingidas de um rubor quase artificial. Enfim, o sr. Café era, em sua essência, make up até nas oras de gozo. Café-da-manhã, "bom dia!", banho, "até mais!", sexo. Corpo robusto, tórax largo, dotado de uma considerável pelugem, que destacava-se em seu colarinho. Ah, para o sr. Café era um distúrbio os sons da natureza, ou qualquer som que não fosse escolhido ou produzido por ele. As suas esquisitices poderiam beirar a insuportabilidade mas, ainda, conseguia manter a neutralidade necessária entre os gostos pessoais e o mundo coletivo; afinal, por mais que quisesse, era um homem que ainda dependia das relações sociais, vivia em comunidade.

O que passaria pelo cerebelo do senhor sr. Café? Senhor sr. Café...

Voltando à manhã outonal, de sol frio, de sábado, o sr. Café acordou entendendo que tudo deveria se repetir outra vez, pois seria apenas mais um dia, dentre outros sábados em que não trabalhava, portanto, deveria cuidar dos afazeres domésticos, já que morava sozinho, não tinha filhos, enfim, era um excelente modelo clássico de solteiro que poderia ser comercializado em um antiquário. O sr. Café coa o café, em toda a ambivalência que o momento produz. O Café coa o café. O Café passa o café. O Café toma o café. O Café acordou para o café. Este era o tempo para ele, dele. Para o sr. Café, o tempo era cíclico, sem linearidade, ia e voltava, permutava-se em uma grande esfera invisível, e por esta razão nada era essencialmente novo, pois tudo não passava de repetição. E o sr. Café nunca lera Mircea Eliade. O tempo não era fantástico, nem legado de outras gerações, outros povos, o tempo era o tempo, sem divisões, como uma imensa roda que gira gira gira gira gira, tendendo planar sobre os mesmos lugares, as mesmíssimas coisas em que depositara fé desde que aprendera com os pais, já tão distantes residindo em seu córtex cerebral, o código de civilidade, que veio a confundir por toda a vida com o código que os humanos das mais variadas origens, classes e culturas chamam por felicidade.

Neste sábado, logo após o café, o sr. Café, notou um barulho incomum que vinha do jardim dos fundos da casa que dava para a janela de seu quarto. Largou a louça na cozinha, secou a mão em um dos panos de prato que estava sobre uma cadeira, e ainda mastigava o último pedaço de pão. Chegou ao quarto, quando percebeu que o som, antes seco, tornara-se um pouco mais estridente, portanto foi à janela abrir as persianas, entender aquilo que parecia um canto intermitente. Ao abrir a janela percebeu um movimento incomum que vinha do alto da laranjeira, cujo os galhos roçavam em parte da janela. Havia um canto mais agudo, que vinha de cima. Quase instintivamente, o sr. Café, colocou as mãos nos ouvidos para abafar o som. O mesmo instinto que o fizera levar as mãos aos ouvidos, o fez tirá-las dos ouvidos e escutar um pouco mais daquele canto que era filtrado pelos sentidos que parecia que, por um instante ao menos, o sr. Café deixara de lado o jeito circunspecto de encarar a vida. Agora, e mais para o sempre, parecia ter despertado outra vez, um despertar diferente daquele que fazia todos os dias para tomar o seu café, o seu banho, para trabalhar. O sr. Café avistou debaixo, no pé da janela, lá o movimento e barulho de um casal de pintassilgos, que não rivalizavam, mas que tentavam uma aproximação, um do outro.

O sr. Café não entendia nada de pássaros, e muito menos de seus cantos, ou das belezas como essa que a natureza o agraciou. Mesmo que o seu tema e a sua normalidade fossem tão avessos, tão afastados destas possibilidades de deslumbramento. Ressoou dentro dele um movimento de agradecimento, quase maternal, em todo jovial. O sr. Café sentou à cama e chorou. Percebia que por tantos anos trabalhara para que algo escapasse dele, sem que soubesse que este algo seria a sensação de vida que desfrutara ao ouvir o casal de pintassilgos. O pintassilgo macho fazia as vezes junto à fêmea, para que outras gerações de pintassilgos pudessem brindar outras gerações de indivíduos com os seus extraordinários cantos. O sr. Café entendeu. Percebeu que não teria o tempo todo do mundo, e que tudo era uma passagem, e que deveria compor um outro olhar sobre as coisas, sobre ele mesmo.

O sr. Café tomou seu banho. Afeitou o bigode, o que não fazia há anos. Presenteou-se com uma incircunspecção que não tinha desde os tempos de colégio. Era preciso. Havia algum ciclo, mas renovado. O sr. Café, muito quieto, refreou os ímpetos, não negou a si o desejo de ser o que quisesse ser, sem estabelecer-se em modelos. O sr. Café olhou mais uma vez para o espelho, franziu, sorriu e foi andar. Como aqueles que dizem "vou andar por aí..."

A vida lhe pedia caminhadas.