quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A Paixão de Anna

Anna (Liv) e Andreas (Max)

Desta vez não houve chantilly; alguma chuva, talvez, poderia. O chantilly do ano passado que encheu meu dia quando da busca por filmes por assistir na Mostra de Cinema do ano passado - motivo de texto aqui. Um calor abafante que sempre pede chuva, que não veio na quarta passada, 22/10, quando velei-me por seis horas no cinema, divididas em duas sessões de Ingmar Bergmann. A Paixão de Anna e Fanny & Alexander.

Doeram costas. Mas o bom que foi compensou. Assisti os dois filmes pela primeira vez - deslizei a quarta na película. Estas sessões, como muitas, têm sido frutos de outras sessões frustradas ou mesmo de um espaço não programado no meu tempo que esparge no ar sem dar-me conta ou o direito de percebê-lo esvoar.

Quando saí de casa, na tarde daquela quarta, não fiz projeções do que poderia fazer, ou mesmo da sessão que viria assistir. Tudo é algo difícil no que tange a programar-se na cidade grande: em horários, em sessões, em passeio, em pensar... A projeção era só aquela na tela, nada na cabeça.


O projeto de felicidade vem nas manhãs mais otimistas. Nos espaços mais vagos que propomos nossa mente passear, na busca da produtividade, alheia às obrigações que nos definham. Enfim, estava eu lá, por assistir A Paixão de Anna (1968). Aquela paixão. Outra vez Max von Sydow. Outra vez Liv Ullmann. Outra vez Bibi Andersson. Outra vez eles; eu a revê-los.

O velado jeito de Bergmann apresentar uma violência de jeito velado. Verossímil, até mais que o outro filme da mesma vertente do diretor, Vergonha (1968). Vergonha é o filme que precede ao A Paixão de Anna. Neste primeiro, Bergmann pinta os horrores de uma guerra, e as conseqüências dela. Duas partes. A primeira, a guerra propriamente dita. A guerra exterior de que Evan (Liv) e Jan (Max), um casal de músicos, tentam fugir buscando refúgio numa ilha, a mesma ilha do Paixão, a ilha de Faro. A "vergonha" são as execuções sumárias, a dor, comandadas pelo coronel Jacobi (Gunnar Björnstrand), que acusa o casal de colaborar com os rebeldes. Depois dessa guerra há aquela outra, a guerra interna, a dos conflitos psicológicos, muito mais intensa e duradoura que a primeira, que colocará em xeque as moralidades, mais do que ideologias. A Paixão de Anna, talvez, é um filme mais estruturado ao definir esses conflitos, pois, Vergonha, em algum momento, parece carecer de continuação ou mesmo de detalhamento no que diz aos conflitos interiores dos personagens. Pode-se dizer que A Paixão de Anna funcione como esta continuação. O espaço é o mesmo. E o fundamental: a ilha de Faro.

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Assistir Paixão deu-me esta impressão, até, porque, os dois filmes estão separados apenas por meses entre a produção de um e de outro. O próprio Bergmann diz, em suas anotações, que o projeto inicial era fotografar Faro como o Reino da Morte, revezando paragens luminosas com outras de horror, para compor um personagem que vaga pela ilha que anseia por algo que está muito distante. Isso pode ter ajudado a unir o sonho ao executável. Atmosfera onírica composta em A Paixão de Anna, com a sua fotografia colorida substituída por flashes em preto e branco granulado, quando o desejo é de demonstrar o Reino do vazio da morte, que vemos Anna (Liv Ullman) imergir e depois reaparecer.

Faro, a ilha, é o outro personagem. Talvez o mais importante. Como não é novidade, Bergmann utiliza o espaço geográfico muito mais do que só locação para as filmagens, mas trabalha-o como o que vai propor e definir o destino, as limitações - ou ilimitações - a que se propõem os personagens das angústias finitas - ou infinitas. Para a fotografia do filme, comandada por Sven Nykvist, a ilha é a ambivalência dos sentimentos de repouso e angústia para Anna buscar paz - ou não - depois do trauma de perder a familia num acidente automobilístico.

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Na minha qualquer toleima, precisava descansar depois daquela descarga. Como precisava. Emendei a sessão à Fanny & Alexander. Uma fábula não-infantil de natal, com esbarros em Pasolini, e depois em nossa vida .

Ao assistir A Paixão de Anna, que não se diferencia em muito da de Jesus, percebo outra coisa nova, mas não tão nova assim: a descarga emocional que glutimos todo o santo dia. Nos dias santos. Nos pagãos. Engolimos amargo, o que nos sobra, e que vamos por resistir. Com temor a nós e sem temer tais estranhezas. Porque não há porquê temer, se não - ou um senão, as ilhas compridíssimas porque vastamos, caminhamos e que serão engolidas. Engolidas mais do que pelo mar, pelo horror indisfarçável e invisível que tentamos não nos submeter, pelo menos quando sobre o travesseiro estivermos com nossos pensamentos, tentando resolvê-los como mais uma das aritméticas da nossa sobrevida.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Domingo

Domingo que ameaça. Novo arranjo de "Sem Você". E a garoa voltou. As deságuas me disseram qual é a cidade. O ônibus chegou. A borracha - chiii - frigia criando linhas de águas que se recompunham e voltavam a empoçar o meio-fio. Depois. O ônibus tinar para o destino. Um pouco quieto, soluçante, das águas na cabeça, das imprevistas umidades. A garoa engrossou. É bem chuva. É bem o que a cidade quer. Atenuar as sinapses fervidas da semana. Domingo pra descansar.

Céu tão plumbeado, tão bonito mas não tão chumbo quanto as calças que sustiam ainda muita água. Gotículas observadas de dentro mas que já se entendesse bem que seria melhor estar lá fora, para o batismo das deságuas, da primavera fria, da avenida vazia que rivalizava com os cães que destroçavam os sacos de lixo para ver de quem será o dia. Era cedo mas já era meio noite. Os postes granulavam luz nas passagens. O dia camuflado, mas pra descansar.

Havia uma resga do ilumino que não era iluminado pelo sol. Não era além. Não era que. A avenida esticada está a minha frente, com o finito só na mente, por conhecê-la, já, mas por vê-la, porque ia num horizonte esquisito pra longe, como para um caminho novo, ainda que atravessasse-o quase todos os dias. Atravessava-o, mesmo aos domingos. Domingo, camuflado, pra descansar.

O livro marcava pouco sentido quando sobre meu colo. Era o que era. Sono só. Só em sono. Uma pouca inquietude, que me impedia de desfrutar da leitura. O livro ficou sobre mim um bom tempo, até desistir. Eu dentro do ônibus, tentando imitar um descanso. Mas o dia começou fingido, com pompa. Aquela hora não era para estar ali: era para não estar ou estar com quem desejasse minha companhia ou com quem ninguém quisesse, mas só sabido era que não era para estar ali. Mas estava, num dia que, de descanso, não se podia descansar.

As feridinhas se recompõem, a pele melhora, a cabeça recebe mais oxigênio. Uma proteção. Um lembrar sortido atenua. Vivo as deságuas, a cidade, o ônibus. Até descer onde tem que estar. A tortuose é menor. Eu, maior. Camuflo-me, para embater as horas que me separam do descanso abolido. Mais tarde vou sorver força, tirar a camuflagem - a minha e a do dia - o dia era feito para libertos. Ainda sou um. Assim, sigo, entendo o caminhar, desviando das orquidáceas, dos seres estreitos, do dia para separar, para ornar os sentidos telúricos, lúdicos. Era só um domingo, de antemão, feito pra descansar.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Notizbuch (Carderno de Anotações)

Der Baum ist Kahl - Herbstzeit.

Das Video hat mir (gut) gefallen. Das Video war mit zu alt.

Ich habe heute zu mittag Bohnen gegessen.

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Aquele par de par de pernas erodiu minha erudição.

Aquelas meninas cantarolavam; aquelas mulheres falarolavam; não aguentei, gritei "As amo!"

Na noite anterior, com a cabeça no travesseiro, espocou-me uns pensamentos mais leves do que os do dia. A noite mais do que boa, dava a verdadeira chance de pensar. "Se setembro chegar, como minha cabeça vai funcionar?" Mas setembro vai mesmo chegar, as horas do vento soprar, as das amoras no asfalto explodirem. "Haverá fruta." "Vai dar mais."

Meninocas aquelas meninas. Compadeço do meu não conhecimento sobre elas, sobre o mundo que mexe comigo e desativa minhas entranhas. Uma música mais do que uma música só para me levantar de verdade, desanuviar a vista e fortalecer o pulmão. Encho-o de ar. Vou pra briga. Cerro os punhos. Franzo o cenho. Entorto a boca. Mostro os dentes. Saliva constante. Outro concerto rege a minha paciência ou sintoniza a demência que nutre a minha consciência. Estou com sorte. Mais ou menos desvio a minha visão para as meninas. Me acertam em cheio. Não caio. Não saio. Estou firme ainda. Meninocas aquelas, nada sei de nada delas. Levo outro cruzado no queixo. Cuspo sangue e dente. Mas não temo. Fogo nos olhos como o "demo". Não penso. Grito forte e alto. Ceguei os ouvidos e ensuderci as circulações, quando corri para preparar o golpe que seria o único, o primeiro e derradeiro. Deixei cair a vergonha, desmoronei-me na ideia e acertei-o junto à fronte. Minhas mãos sentiram a pressão nos ossos do choque dos materiais orgânicos que se imbecilizavam perante uma plateia. Sonorizou-se pelo ar um uivo médio de dor que vinha do outro lado de lá. Um desmaio súbito. Não me movi. Só o vi por uma fração depois de acertá-lo. Dei as costas e ouvi a queda. A queda. Fenomenal. Ele não morreu. Apenas parou. Eu continuei. Olhei de novo para as meninas. Nem estavam mais lá. Hão de esconder-se logo no clímax de minha gestão. Me falaram. Sumiram. Com os supercilhos inchados voltei pra casa; sabendo desde já que o amor próprio avultava muito mais que os mexidos nos estômagos feitos por um bonito par de pernas.

No meu altar, peço a meu Pai que olhe por mim, me endireite, me acentue e que me temporize das blasfêmias que meu coração possa dizer por mim, ou possa ferir em mim. Sem cicatriz, só um tanto exausto, agradeço as graças do bom Pai. Severino mas justo.

"O Senhor concedeu-me a verdade."

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O Passeio Repentino

um dos desenhos feitos por Kafka

O nome deste blog dá-se pela leitura do pequeno conto de Franz Kafka, Der Plötzliche Spaziergang. Traduzindo-o: O Passeio Repentino.

O conto é mesmo muito pequeno. Cabe em uma página. Mas a quantidade de caracteres nada tem a ver com a força de um texto, exemplo muito bem estabelecido com este.

O Passeio Repentino
encontra-se no primeiro volume publicado, Contemplação (Betrachtung), ainda em vida por seu autor - que já foi traduzido também por Consideração. Este volume contém historietas, contos breves.

Kafka nem sempre é kafkiano. O que quero dizer com isso? Bom, criou-se uma cultura nas rodas e debates literários de dizer que Kafka é naturalmente pessimista, com a realidade, com o universo, e por esta razão os distorce, com o objetivo de não empreender uma fuga deles, mas de provocar-nos em nossos íntimos, no mundo distorcido que há em cada um. A identificação ou repulsa é natural ao ler Kafka. A primeira, por observar a si próprio nos flagelos com palavras nada adornadas de seus personagens; a segunda, por realmente não aceitar que isso aconteça, e preferir o refúgio em algo que não seja tão "denunciador".

Quando digo que Kafka nem sempre é kafkiano, quero demonstrar que Kafka nem sempre é monstruoso tal como se desenha a suas novelas, no que condiz ao tratamento psicológico. Muitos duvidam, mas Kafka é muito esperançoso também, ainda que já tenha escrito: "Há esperanças, só não para nós." A figuração do absurdo faz-se necessária para a denúncia. Há menos horror do que o que se imagina, propriamente. O horror maior são mesmos estes dias, é o que transparece em o O Processo, texto cada vez mais atual quando questionamos a situação de justiça, e a nossa responsabilidade sobre ela, a nossa contribuição para que haja, ao menos, um sentimento de justiça em quaisquer setores sociais.

Enfim, não objetivo discorrer de forma aprofundada sobre isso, mas quero apenas mostrar que Kafka é um indivíduo de esperanças, principalmente ao compor o conto O Passeio Repentino, um texto que parece desproposital e sem conflitos; mostra-nos uma idéia simples para reverter uma situação, que fará, sem dúvida, aquele personagem, como o nosso dia, como os nossos empreendimentos, com certeza, bem melhores do que se configuravam, quando já decidíamos quebrar uma verdade, quase aceita.


Seguem os textos; o original em alemão e o traduzido para o português, de forma sempre exemplar, por Modesto Carone.


Der Plötzliche Spaziergang

Wenn man sich am Abend endgültig entschlossen zu haben scheint, zu Hause zu bleiben, den Hausrock angezogen hat, nach dem Nachtmahl beim beleuchteten Tische sitzt und jene Arbeit oder jenes Spiel vorgenommen hat, nach dessen Beendigung man gewohnheitsgemäß schlafen geht, wenn draußen ein unfreundliches Wetter ist, welches das Zuhausebleiben selbstverständlich macht, wenn man auch jetzt schon so lange bei Tisch stillgehalten hat, daß das Weggehen allgemeines Erstaunen hervorrufen müßte, wenn nun auch schon das Treppenhaus dunkel und das Haustor gesperrt ist, und wenn man nun trotz alledem in einem plötzlichen Unbehagen aufsteht, den Rock wechselt, sofort straßenmäßig angezogen erscheint, weggehen zu müssen erklärt, es nach kurzem Abschied auch tut, je nach der Schnelligkeit, mit der man die Wohnungstür zuschlägt, mehr oder weniger Ärger zu hinterlassen glaubt, wenn man sich auf der Gasse wiederfindet, mit Gliedern, die diese schon unerwartete Freiheit, die man ihnen verschafft hat, mit besonderer Beweglichkeit beantworten, wenn man durch diesen einen Entschluß alle Entschlußfähigkeit in sich gesammelt fühlt, wenn man mit größerer als der gewöhnlichen Bedeutung erkennt, daß man ja mehr Kraft als Bedürfnis hat, die schnellste Veränderung leicht zu bewirken und zu ertragen, und wenn man so die langen Gassen langläuft, - dann ist man für diesen Abend gänzlich aus seiner Familie ausgetreten, die ins Wesenlose abschwenkt, während man selbst, ganz fest, schwarz vor Umrissenheit, hinten die Schenkel schlagend, sich zu seiner wahren Gestalt erhebt.

Verstärkt wird alles noch, wenn man zu dieser späten Abendzeit einen Freund aufsucht, um nachzusehen, wie es ihm geht.

Franz Kafka


Tradução

O Passeio Repentino

Quando à noite parece ter-se tomado a decisão definitiva de permanecer em casa, vestiu-se o roupão, depois do jantar ficou-se sentado à mesa iluminada, às voltas com aquele trabalho ou jogo ao término do qual habitualmente se vai dormir, quando lá fora há um tempo inamistoso que torna natural permanecer em casa, quando já se passou tanto tempo quieto à mesa que ir embora teria de provocar espanto geral, quando até as escadas já estão escuras e a porta do prédio fechada, e quando apesar disso tudo, num mal-estar repentino, fica-se em pé, troca-se o roupão, surge-se imediatamente vestido para ir à rua, se esclarece que é preciso sair, faz-se isso depois de breve despedida, acreditando-se ter deixado maior ou menor irritação conforme a rapidez com que se bate a porta do apartamento, quando se está de novo na rua com membros que respondem com uma mobilidade especial a essa liberdade inesperada que lhes foi concedida, quando se sente, através dessa decisão, concentrada em si mesmo toda a capacidade de decidir, quando se reconhece com um senso maior que o comum que se tem mais energia do que necessidade de produzir e suportar a mais rápida das mudanças, e quando assim se vai às pressas pelas longas ruas - então por essa noite está-se totalmente desligado da família, que desvia seu rumo para o inessencial enquanto, firme de alto a baixo, os contornos com as linhas carregadas, dando tapas na parte traseira das coxas, ascende-se à sua verdadeira estatura.

Tudo fica mais reforçado quando, a essa hora tardia da noite, se procura um amigo para ver como ele vai.

(tradução de Modesto Carone, no livro A Contemplação / O Foguista, de Franz Kafka - ed. Cia. das Letras)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Carta

São Paulo, 1° de Outubro de 2008.


Minha querida,



quanta saudade, quanto sentimento quando tudo me parece que vai se dissolver em vão. Quero vê-la, mas há um espaço enorme entre a minha vontade, que somatiza nessa ausência simultânea de um e de outro. Chove muito aqui em São Paulo. Agora o relógio marca 19:06. É uma quarta-feira abençoada. Tudo de bom aconteceu. Só mesmo a distância entre nós faz com que a situação não seja melhor.

Hoje recebi um telegrama: o convite para um novo emprego. Bem, você sabe que isso não é bem um convite, mas o resultado de um esforço enorme nos últimos tempos, para que pudesse então encontrar um novo trabalho. O bico como professor de inglês estava me consumindo energia e me rendendo pouco dinheiro. Não que eu não gostasse de lecionar, mas, você sabe, era mais pela paixão pelo conhecimento (pois sempre acreditei que se aprende mais ensinando do que o contrário) e de poder passá-lo a alguém, do que pelo salário, muito baixo. Aquela escola era pequena, não dava para ter pretensões maiores ou tentar algo diferente.

Posso dizer que a experiência como professor foi valiosa. Lê-se, todos os dias, em qualquer lugar, que tudo que é vivido é riqueza que soma para a nossa experiência, para toda a vida. Ainda que isso seja um discurso batido, nunca duvidei. Sempre acreditei. E você sempre me culpou e me acusou pelos meus pensamentos e discursos românticos. Talvez porque, em algum momento, acreditei piamente em que o mundo iria mudar, bastávamos nos predispor à revolução. (Estou tomando um café coado, talvez o mais gostoso que fiz nos últimos dias). Uma breve história dos homens nos livros me fez acreditar que era só erguer a voz, reunir os camaradas que estaríamos a meio passo de um "mundo diferente", lembra? Devia ter uns dezesseis; mas você, sempre mais madura que eu, sempre me disse que o negócio era "trabalho, determinação e suor". Hoje sei mais do que ninguém, neste labirinto de pedra e fumaça que é essa cidade - pela qual me apaixonei na mesma intensidade que senti indiferença no início, era como não se sentisse esse chão - que a batalha é muito mais complicada do que aquela que vivemos nos livros. Não que aquelas tenham sido fáceis, mas é fato: não foram vividas por nós.

Suas palavras, em cada dia, em cada bloco do meu caderno, estalam difusas e logo se ajeitam dando forma à verdade embutida nelas, às quais, pouco a pouco, vou me acostumando e me adapto nestes dias, nesta cidade sem você. Quando digo que me acostumo não quer dizer que não sinto a sua falta ou que essa diminui com o correr do tempo; é o contrário. Sinto tanto a sua falta, que hoje comprei flores, iguais àquelas que a presenteei em seu aniversário (flores mistas do campo, lembra?) para colocar no meu canto preferido da sala. As flores, o maço, o cheiro-verde lembra você. O meu olfato estava tão desacostumado desta doçura, com todos os dias aspirando o monóxido de carbono do ar e as outras asparezas daqui, que quando cheguei em casa, deitei-me no sofá, arrumei as flores no vaso, fiquei a contemplar aquele espetáculo particular de ter e sentir flores do campo no apartamento; não foi uma fuga do mundo, foi uma corrida no pensamento para os seus braços.

Deixe-me continuar sobre o telegrama. Pois bem, o trabalho parece ser bom, não vou receber muito no início, mas vou fazer o que gosto de fazer que é desenhar. Vou trabalhar num escritório de design, este filiado a uma das grandes agências publicitárias daqui de São Paulo. Algo mais promete para o meu desenvolvimento profissional por lá, pelo menos é o que eu imagino e espero. Estou apostando que "desta vez vai". Estou muito feliz, claro. Mas não quero fazer muitas projeções. Um dia por dia. Certo? Sei lá, tenho aprendido muito sobre viver e a sobreviver (e viver sozinho em uma outra cidade onde ninguém te conhece ajuda nisso) neste meio sempre instável. Ah, já ia me esquecendo de dizer: recebi o seu cartão! A sua caligrafia me trouxe paz nestes dias; e o sol sorrindo que desenhou no canto do cartão me fez mais alegre. O sol sorrindo é a sua melhor caricatura.

Mas não quero imergir nesta contemplação do "coração solitário". Eu comecei a carta falando de saudade, mas não quero terminá-la neste tom, ressaltando o sentimento de ausência, a dor que vaga no peito, só porque não a vejo há meses. "Só" me parece não ser uma palavra muito apropriada, porque isso não é pouco, acho. E "só" também é um vocábulo que designa solidão. Tudo o que não se quer para os corações aflitos.

Quando digo que tudo de bom aconteceu, não está restrito à notícia do novo trabalho, às flores que adornam meu canto. O que "preenche" este tudo é ter vivido a sua presença hoje como não fiz desde que nos despedimos naquele janeiro gelado. O que aconteceu que não conseguimos nos tocar, sentir o hálito quente no pescoço e os nossos sussurros ordinários no pé do ouvido? Temos os nossos compromissos, as nossas responsabilidades, os nossos afazeres, as nossas dívidas, os nossos prazeres, as nossas vidas, mas acho que merecemos um pouco mais: nos merecemos. Concorda? Quando decidi redigir esta carta estava pensando "furiosamente" nisto. Não sei nem se o advérbio de "fúria" aqui cabe bem, mas é fato de que a sua ausência tem me causado fúrias constantes. Não de você. Fúria de mim. Fúria de todas as coisas que nos aparta. Fúria de toda a verdade estabelecida, que ressoa desde o momento que tiro os pés da cama e tenho que me deparar nesta cidade com os gestos e rudezas das pessoas que cruzam o sinal, o meu caminho, esbarram e não se importam com nada, mesmo que por um sinal, um gesto pequeno de absolvição.

Mas a finalidade maior desta carta é a de lhe dizer que estou bem. Poderia ter lhe dito por telefone, coisa que nos acostumamos neste tempo de fazer: viver a vida entre os cabos e as fibras óticas. Não fossem estas conexões poderia dizer que já nem me lembrava de seu respiro. Mas você sabe que estou bem; da ligação que lhe fiz ontem, quando estava quase adormecida, com voz de sono.

A carta surgiu porque me veio o desejo de registrar a notícia em algo que pudesse depois ver e rever, reavivar, tocar. A carta tem isso de bom, ainda que não carregue a praticidade de um telefonema, esta não se perde no tempo, nem no ar como as nossas vozes. A lembrança capta um momento ínfimo de nossas verborragias. A cartas registram tudo o que se quer e lá ficam até o momento que se decide rasgá-las ou desfazer delas. Cartas são declarações eternas. Podemos, vez ou outra, arrancá-las de nossos objetos e rever aquelas palavras, que num momento, podem ser restabelecidas com o frescor de quando foram escritas. Eu gostaria justamente disso. De deixar registrado o dia, a hora, a chuva, o café saboroso (já estou na terceira xícara), as flores, a lembrança que remete à sua figura. Está tudo aqui registrado nas pautas que serão carregadas por pessoas que nem conheço até chegar em seu portão. Para, logo, rasgar o envelope, tirar-lhe um dos cantos para ver do que se trata, o que naquela folha encerra.

Meu anjo, não encerro nada, apenas abro pra você, como nunca (como os poetas) d'antes, o meu carregado sentimento de amor. Almejo que estas minhas palavras borradas por esta caneta (que solta tanta tinta) reguem em algo o seu espírito, que lhe conceda, assim como a sua caligrafia e o seu "solzinho" me fizeram, um pouco de paz e de energia renovada.

Por tudo isso, posso dizer que a minha quarta-feira foi abençoada, como espero que seja a quinta e a sexta. Que este sentimento de benção se perpetue pelo fim de semana, e esteja às meias e prossiga até o dia em que eu possa encontrá-la outra vez. Quando então poderemos, não só com os telefonemas e cartas (ainda neste mundo das conexões virtuosas), tatear-nos e dizer-nos: "É mais belo o vivido quanto mais o sonhado por vivê-lo". O sonho está neste encontro, que abro e antecipo por meio desta carta.

Tenho quase certeza que, por todos nós, nada se dissolverá em vão.

Um beijo terno, do seu

Amor