terça-feira, 28 de abril de 2009

Os Bacharéis

PRONOMINAIS

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.

Oswald de Andrade


Eles não precisavam de muito para fazer as pessoas rirem. Não eram
honoris causa, e mesmo assim eram inteligentíssimos. Não simbolizavam a classe daqueles que fazem estudos sociológicos, psicológicos e de engenharia tão complexos para entenderem o mundo, mas que não conseguem, muitas vezes, entender os próprios filhos, os próprios problemas, tratar das situações mais simples. Eles representavam o brasileiro comum, na essência, apenas.

Eles eram figuras da cultura brasileira, da arte que se faz todos os dias, da arte das mães que madrugam; dos pais que pernoitam; do brasileiro combatente, que muitas vezes se entristece com a sua realidade de limitações, mas que consegue a mágica de sorrir, mesmo com muito pouco, desafiando o improvável do próximo dia.

Falavam errado, para compor um personagem, ou não. Falavam errado porque é preciso saber falar errado. Eles sabiam e eram livres assim, no batuque dos dias, atraindo os holofotes que muitos letrados, pseudo-intelectuais e doutores sempre buscaram e não conseguiram.

Eles eram Senhores, Doutores no que faziam, sem muito alarde, sem muito barulho. Hoje, são considerados sagrados nas classes em que desempenharam os seus trabalhos. Transformaram-se, cada um a seu jeito, em ícones da cultura popular brasileira, da música, do humor, do dia-dia.

Chamavam João Rubinato de Adoniran, e Antonio Carlos Bernardes Gomes, de Mussum. Estes, sim, bacharéis, imortais sem fardão, beca ou túnica.

Não é saudosismo, pois temos outros vários doutores por aí que, como eles, souberam semear inteligência com simplicidade. Há tantas Marias e Josés que merecem aplausos, como os que recebem ainda Adoniran e Mussum, que não daria para listá-los em jornal, blog, ou em qualquer outro meio que se prestasse a ceder o espaço.

Lembrar deles não é saudosismo, é saudável.

Sugeri-los como forma de pensamento não é apenas trabalhar a memória, é memorável.

Eis os Bacharéis, do ambiente familiar a ambos, do bar, do boteco; onde desfiaram parte da filosofia que os transformaram nas pessoas que não esquecemos.

Eles eram eles. E era só isso. Tudo isso.


Antonio Carlos Bernardes Gomes


João Rubinato

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Era abril

Amanhã vai ser outro dia!

O pai em frente à televisão ligada. Notícias sobre política, comícios, jornalistas, artistas na TV e o menino não entendia nada. Não sabia nada daquilo, do significado de tanta gente nas ruas, portanto nada fazia sentido pra ele. Muito barulho, camisetas amarelas, muita gente falando. O menino, com 5 anos, não podia mesmo saber do que se tratava. Descobriu na escola, uns 5 anos depois. Eram as "Diretas Já". Era 1984. O ano em que o mundo deveria acabar. E não acabou. Para o Brasil ele começou. Começou de novo em 1984. O menino se lembra de que, àquela época, havia sobre o armário da cozinha uma Colomba Pascal imensa (sob os olhos de uma criança, em lembrança, tudo parece ganhar uma magnitude maior do que realmente é). Era a época da Páscoa. Era abril.

Na mesma época, em uma confusão de imagens, ele se recorda do pai em frente à TV, e que fazia um sol muito forte, muito claro e que clareava toda a sala. Era feriado então; para o pai estar em casa num dia de sol, só podia ser domingo ou feriado. O pai trabalhava durante os dias e só chegava quando o sol já estava muito fraco ou quando já não estava. Era um dia de sol, e o pai lustrava a sua bicicleta no chão da sala, com a TV ligada. Todos os canais falavam de um só assunto e o pai pedia para que o menino não fizesse o menor barulho, queria ouvir a TV. Ver o que se passava. O pai do menino era metalúrgico, e conheceu nas suas visitas ao sindicato o homem que agora dirige o Brasil. Então, associou, o que entendeu só depois, a confusão de imagens, de gente e de mistério que exibiam na TV. Era a morte do Tancredo. Aquele que quis dirigir o Brasil naquela época, para levá-lo a outros rumos, outras histórias. Aquele homem, o Tancredo, morreu, pouco depois da Páscoa. Era abril.

Sem saber, 25 anos depois, o menino rememorou tudo aquilo. Recordou de tudo, agora num mundo diferente do daquele que compartilhara com o pai, e que agora não compartilha mais. O menino, sem querer, se lembrou do pai, do tempo, do sol, das vontades e da ingenuidade. Ele fotografou alguma coisa que não se perderá, não em filme nem em documento. Guardou, simplesmente porque algo instintivo fez com que levasse aquelas imagens, aquelas ousadias de que não entendia, só porque queriam liberdade. O menino lembrou de tudo outra vez e chorou. O menino se lembra de que o pai não choraria. O pai, formoso. Se recompõe. O menino olha para o vazio e sorri. É abril.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

509

Central do Brasil: um pequeno cosmo do Brasil

Ontem, 22 de abril de 2009, o Brasil fez 509 anos. Essa é a verdade que os livros de história nos contam desde quando não nos damos por gente, e lembramos dela, e bem. Uma das primeiras lembranças primárias relativas a nossa educação é o "Quem descobriu o Brasil?", para respondermos na ponta da língua "Pedro Álvares Cabral". O sentimendo de "nação brasileira", talvez, não tenha sequer 150 anos. Ou seja, o que significa 509 anos, se parece-nos que o Brasil não precisaria de tanto para chegar ao que somos hoje, precários, meio-contentes e conformados?

Os primeiros anos de colônia, da Terra de Santa Cruz, foram de intensa exploração e reconhecimento deste território. Não havia nenhum princípio de semear e desenvolver uma nova terra aqui, um novo lar pelos ibéricos; apenas a política egocêntrica de extrair os bens dessas terras desconhecidas, do Novo Mundo, para utilizá-los lá, do outro lado do Oceano. Essa foi a realidade da América Espanhola e da América Portuguesa.

De alguma forma, nada disso mudou muito, a diferença é que hoje temos um hino, uma bandeira e muito mais gente habitando estas terras, das planícies amazônicas, passando-se pelos planaltos até os pampas do sul. Em meio a todo o fervor de quase duzentos milhões de habitantes, o Brasil é constatadamente um conglomerado de beleza e de destruição; de vontade e de submissão; que faz de todos nós os mesmos subservientes de nossos antepassados: mudaram os nossos patrões mas a tão sonhada 'promoção' a um país justo, soberano e respeitado ainda são apenas anotações da planilha de desejos de nosso demente, único e corajoso sentimento de 'brasilidade'.

Somos soberanos, sim. Temos a nossa moeda, o nosso teritório demarcado, as nossas forças armadas, uma língua, um poder executivo, um poder legislativo, um poder judiciário, uma cultura e várias etnias que fazem de todos que nasceram nesta porção enorme de terra da América do Sul serem conhecidos no mundo como Brasileiros, grafa-se nesta ocasião com as maiúsculas que melhor exprimem a semântica deste substantivo adjetivado. Está no RG e no passaporte. Soberania, então, não é apenas um sonho, mas sim uma realidade, uma realidade carente de outras coisas que não sejam somente batizadas por um grito de independência. Como diz a música , do Tom Zé, "Batiza esse neném, batiza esse neném".

Temos os nossos filhos e acompanhamos, de tempos em tempos, novas gerações empurradas com ímpeto de fazer daqui o país do futuro, mas o problema é que em 509 anos parece que vivemos num passado perpétuo, onde o futuro nunca chega ou nunca chegará. O futuro não existe ou talvez sejamos um país que adora espalhar por seu povo - seu maior bem - fantasias que enriquecem os livros de história, os sentimentos de esperança que, por ventura, venham fortalecer aquilo que nos ensinam a nos orgulhar, desde cedo, que é ser brasileiro, com algum orgulho, com algum amor.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Joan

A sua voz é de veludo. E já há tempos que a ouço. Ela é Joan Wasser, mas mais conhecida como Joan As Police Woman. Com dois álbuns lançados, não é só apenas mais uma daquelas que denominam por aí por 'promessa'. Ela é real, tal como o nome de seu primeiro álbum Real Life, lançado em 2006. A conheci neste mesmo ano, nestas minhas buscas frenéticas sobre música na internet. Descobri que ela já havia sido backing vocal de um dos cantores mais ouvidos por mim nestes últimos tempos, Rufus Wainwright, além de ter trabalhado com Anthony and the Johnsons, Scissor Sisters, dentre outros artistas.

Através do single Eternal Flame comecei a prestar atenção nela, mas ao ouvir todo o seu primeiro álbum - ótimo!- percebi que Joan tinha uma coerência rara para um primeiro álbum. O resultado não foi outro senão desde então ela residir em minhas coletâneas de MP3, celular, e também no velho e firme Discman.

No ano passado, Joan lançou o seu segundo álbum, To Survive, que serve principalmente para afirmar a sua qualidade e atestar que é uma das poucas boas coisas da música pop recente americana (ou pelo menos uma das que me despertam interesse). Em seu segundo álbum, Joan continua a trabalhar muito a sua voz com melodias envolventes e muita belas, com arranjos bem construídos.

Joan Wasser, ou melhor, Joan As Police Woman precisa ser ouvida, ser descoberta por quem preza por trabalhos no meio musical de hoje que não sejam descartáveis.

Eternal Flame de seu primeiro álbum, Real Life

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Uma soda e uma música

Holly Golightly. O pai ou a mãe dela devia gostar muito de Breakfast Tiffany's (Bonequinha de Luxo), ou da Audrey (Hepburn). Eu não pesquisei (neste post não há informações googleadas).

O som dela é formidável. Blues-rock.

Vídeo (num de seus raros vídeos oficiais)

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Magiar

Pessoas, alegrias incontáveis

Eram muitos. Uníssonos. Uma legião cantava. Evocavam alegria e curtiam agonia. Eram tantos. Nosso Deus. Eram tantos naquele lugar gigante. Como éramos tão pequenos. Pequeninos do tamanho dum grão. E não éramos grãos. Crescíamos em charme por esperar a Lua aparecer, o céu azular-se ainda mais e os refletores enfim serem acendidos para que em instantes dessem início ao espetáculo. Eram tantos. Uníssonos. Uma legião cantava. Evocavam alegria e curtiam agonia. Era tudo bonito. Era calmo, quando tarde. Víamos aquele chão verde. Aqueles lugares coloridos que depois seriam de apenas três cores. Era bonito. Era demais.

Esperávamos o momento de acontecer. O momento esperado. A ocorrência do momento em que o céu era mais azulado do que as horas da tarde. Ora, ora. Era hora. Era belo. 'Como será?', o pensamento pensava dúvidas, o coração sucitava certezas. 'Mas será?'

Os objetos eram uma bola e vários desejos, muitos desejos, uma infinidade incontável de desejos. De quarenta e sete mil presentes e de outros milhares ausentes, presentes com a vibração, a fúria, os cantos evocados de longe, via satélite. Trabalho das antenas distantes que aproximam. Calor, gritos e suor. Eram muitos. Uníssonos. Uma legião cantava. Evocavam alegria e curtiam agonia. Eram tantos. Conjugaríamos o que não sabíamos que era então o verbo de fazer mágica, de encantar, de fazer magia, de 'magiar'... Íamos. Fomos. Fizemos.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Tourbillon de La Vie


"Não é demais, como não é tarde. Sempre tenho tempo pra você. Você me fez bem, me faz bem. Eu sorrio deveras, e choro um pouco, confesso. Mas não será 'o' tempo, mas 'um' tempo - o seu é todo aquele que disponho, para ficar bem sempre outra vez, e é assim sempre que te vejo. Coloquial. Divertido. Bonito."

O cartaz da reestreia de Jules e Jim, de Truffaut, nos cinemas britânicos, no ano passado. O belo, jovem, atemporal e amigo.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Contra a Parede

Sibel Kekilli como a personagem homônima: um novo jeito de viver ou de fingir que vive

À toda velocidade, o carro contra a parede. Contra a parede. Traumatismo no pescoço. Uma desilusão e outras questões não resolvidas. Ser turco fora da Turquia. Família. Diferença de idade. Sair debaixo das asas dos pais. Um casamento arranjado. Um gostar arranjado. Um gostar que depois é sério. É amor. O sexo que não existe. A brincadeira que existe. O exercício da liberdade. O ofício da cumplicidade. Quase morrer. Quase viver. Sobreviver. Crime passional. Vergonha. Procura. Ausência. Vida nova. Filhos. Outra vez família. Outra vez ausência. Voltar. Seguir. Discutir. Duvidar. Não entender os novos caminhos. Viver.

Assim também podemos apresentar um dos melhores filmes alemães realizados nesta década, Contra a Parede, de Fatih Akin. O diretor, de raízes turcas, como é comum em sua cinegrafia, aborda a questão da identidade, que aqui poderá se expandir a todos os povos, etnias que enfrentam com certa dureza a distância de sua terra e a incomunicabilidade no país estranho, das pessoas estranhas - por motivos que se acumulam - pela língua, pelos hábitos, pelas crenças, pela terra, pela música, pelo choro, ou por nada.

Desde a primeira cena, o filme, como propõe o título, faz o espectador jogar-se contra a parede, se não literalmente, pelo menos ideologicamente como uma salvação das frustrações que afloram sempre que nos deparamos com obras da vida que nos atordoam, por nos mostrarem, sem rodeios, que o que esperamos, concebemos, no final, é exatamente tudo o que jamais imaginamos.

*** Ficha técnica ***

Título original: Gegen die Wand
Ano de produção: 2004
Direção: Fatih Akin
Elenco: Sibel Kekilli, Stefan Gebelhoff, Birol Unel, Catrin Striebeck, Francesco Fiannaca
Duração: 121 min
Línguas : Alemão; Turco
País: Alemanha

Uma das melhores cenas, a que dá nome ao filme - ao som de Depeche Mode

sábado, 4 de abril de 2009

Costello & Bacharach

Descansos

O jovem casal brincava no último banco do último ônibus. Por um momento, enquanto os dois esperavam pelo ônibus, pensavam que já o haviam perdido. "Perdemos o último". E antecipavam em pensamento a caminhada que enfrentariam naquela madrugada fria. Agora, pareciam ter esquecido da aflição que os dominou por um tempo lá fora, e brincavam lá dentro. Parecia um desafio: quem contava a piada mais sem graça? Mesmo assim, riam por qualquer coisa, até por um casual silêncio que vez ou outra se instaurava ali no fundo. Com as caras de dúvida e apreensão, não bastava muito para caírem no riso, desfiarem lorotas, enquanto o motorista parecia testar o limite do ônibus, das ruas, das curvas, quase ignorando o semáforos vermelhos: era já tarde, muito tarde, e não só os jovens, mas o motorista, como o cobrador, queriam, precisavam antecipar a hora do descanso, do lar.

Os postes de luz, vistos de fora, àquela velocidade do ônibus, pareciam meras faíscas que enchiam o ar com um gás esfumaçante muito branco, e depois sumia. Ficava um para trás e logo vinha outro à frente. As ruas eram cortadas com o ronco grosso do motor à explosão. Explodia não só o combustível, mas como a intensidade dos barulhos do casal lá no fundo que podia ser ouvida até onde estava o motorista. Os gatos pingados que estavam naquele carro que fazia sua última viagem, repousavam com a cabeça encostada à janela; alguns sentiam a atmosfera silenciosa que espalhava-se pela cidade naquelas horas tardias. Era tudo bonito e tão feio, quase não se via nada, e o rasgar do ônibus pelas ruas parecia espantar apenas os cachorros, os únicos foliões e transeuntes naquelas avenidas e vielas.

O jovem casal parecia mais quieto, conversava em voz alta e ainda assim algo praticamente incompreensível por qualquer um que estivesse naquele ônibus. A carroceria do ônibus balançava conforme os desníveis, e por uma certa imprudência do motorista, por que passava naquelas vias urbanas mal conservadas. A prudência já fora abondanada há muito pelo motorista, tudo pelo aconchego de sua cama, pela comida esquentada que devia esperá-lo, escondia sob o pano de prato sobre o fogão. Parte dos gatos pingados adormeciam, espera-se, para todas as sortes, que o destino deles fosse o ponto final do ônibus, tão barulhento e tão salvador para o jovem casal, que há alguns minutos conformava-se com uma longa caminhada naquela noite.

Em poucos minutos, o ônibus cruzava a esquina da Matriz, serpenteava as ruas que findavam no largo do colégio municipal, tradicional, das paredes externas corroídas pela erosão de tanto vento, chuva e sol, e quase nenhum zêlo por sua arquitetura neo-barroca que parecia teimar a ser relegada aos posteriores somente através das fotografias. Os meninos não pensavam; o motorista e o seu companheiro também não; os gatos pingados não sabiam ou não queriam saber, queriam somente descansar.

O ônibus entrou na rua paralela ao cemitério; o jovem casal, forçando os olhos, o cenho tentavam ver os muros brancos e altos da necrópole. Dali, as únicas coisas possíveis de serem vistas eram as cruzes que apontavam para o céu. Eram suntuosas sobre os imensos mausoléus: quase-torres, pareciam indicar o destino das almas que habitavam os corpos ali guardados, tornados meras carcaças de ossos, sob as campas de granito dentro de seus respectivos esquifes.


A noite não era mortuária, era viva. Era escura e doce. Era fria com pequenos sopros mornos dos ventos do norte. E os meninos, quase em total silêncio, sentiam isso, sentiam arrepios até o momento em que o ônibus cruzou, e jogando o peso do corpo para a esquerda, quando o ônibus pegou a direita. O quarteirão demarcado pela muralha branca do cemitério terminava naquela curva sinuosa. O ônibus seguia o seu itinerário, com traços de ansiedade do motor, que não eram da máquina, mas do motorista, o homem que a manobrava. O jovem casal trocou olhares com uma senhora que acabara de levantar-se do banco e dar o sinal, e não sabiam porque sentiam alívio. A senhora desceu. E o motor resistiu, intensificando o seu ronco no declive que sustentava em primeira marcha. Terminado o pequeno morro, as cores que distinguiam o bairro do centro da cidade começavam a ficar mais nítidas - já estavam em frente à quadra de esportes, de onde se via uma luz fulgurando ao fundo. Vinha da casa do zelador. Os gatos pingados que dormiam, agora estavam acordados, pareceiam ter sido despertados pelo cheiro do local, peculiaríssimo, que reforçava que aquela zona suburbana era um microcosmo que não tinha relação alguma com o grande centro da cidade. Não tinha. Quase um outro país.

O menino, sonolento, com a vista embaçada pelo sono, percebia que já era quase hora de descer. Viu alguns dos gatos pingados fazerem uma espécie de saudação ou agradecimento aos últimos operários daquela noite: o sr. motorista e o sr. cobrador. Ele operava algum raciocínio para levantar-se do banco, acordar a namoradinha e dar o sinal para poderem descer. No entanto, algo imprevisível ocorreu. Ao chacoalhar os ombros da companheira, viu que esta permanecia estática, imóvel, sem indício de despertar da sonolência. Chacoalhou-a outra vez: nada. Ficou então preocupado. O corpo da garota não respondia à nenhum estímulo. Colocou a sua mão sobre o peito da garota, onde não conseguia sentir o tumulto de vida daquele coraçãozinho. O cobrador, lá da frente, sinalizou que haviam chegado ao final do longo trajeto. "Final!" E agora? Ele gestículou algo não inteligível ao cobrador, que não entendeu e que continuava a falar por sinais, "final". O rapaz gritou, "ela não está bem", "ela precisa de ajuda". O cobrador foi até ele, estendendo o braço e disse "é hora de descansar" e, abrindo um largo sorriso, alcançou o seu ombro e o balançou o suficiente para que o menino entendesse "é o fim", e angustiadamente o meninou gritou, "não pode ser o fim", quanto tudo se apagou.

O menino então despertou do pesadelo e viu ao seu lado a menina quase de pé, e o cobrador dizendo com os olhos "é a hora do descanso". O menino entendeu tudo e ficou bem por estar de volta daqueles sonhos fúnebres e de ver a companheira sorrindo para ele. Com uma angústia tamanha, abraçou-a forte logo que desceram do ônibus, quando despendiram-se do cobrador e do motorista com um leve aceno; os dois já estavam longe, alcançavam a distância. Ainda assustado, ele a mirou com um certo olhar preocupado, mas ainda enternecido, como se dissesse, todavia: "estar com você é tão bom", e desceram a rua, para mais alguns passos para os seus descansos.

"Si esto es verdad..."

J.L. Borges: o presente é infinito


Si esto es verdad y si cuando el tiempo nos deja,
nos queda un sedimento de eternidad, un gusto del mundo,
entonces es ligera tu muerte,
como los versos en que siempre estás esperándonos,
entonces no profanarán tu tiniebla
estas amistades que invocan.



/ Se isto é verdade e se, quando o tempo nos deixa,
nos resta um sedimento de eternidade, um gosto do mundo,
então é ligeira a tua morte,
como os versos em que sempre nos estás esperando,
então tuas trevas nunca as profanarão
estas amizades que invocam. /


Jorge Luis Borges


O início de um novo período é também, enfim, ler a biografia do Mestre - lê-lo.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A Ilusão Viaja de Trem


A Ilusão Viaja de Trem, do cineasta espanhol Luis Buñuel, de sua fase mexicana, é um filme que sintetiza bem um dia como hoje, 1° de abril, considerado por muitos o dia da mentira.

O filme narra a história de dois operários da companhia de bondes da Cidade do México que, depois de um bom trabalho de manutenção, consertam o bonde 133. No entanto, os engenheiros e diretores da companhia não confiam no trabalho da dupla e decidem mandar o bonde para o desmanche. Decepcionados, depois de uma noite regada a muita bebida, decidem sequestrar o 133 e fazer um tour na madrugada pelas ruas da Cidade do México. Um peculiar road movie.

Por muito tempo considerado um filme menor na cinematografia de Buñuel, hoje, A Ilusão Viaja de Trem figura entre os seus melhores trabalhos da fase mexicana (Buñuel também dirigiu filmes na Espanha e França).

A viagem é repleta de situações inusitadas e bizarras. O estilo surrealista de Buñuel implementado e consagrado com o Cão Andaluz (1929) aqui dá as caras novamente e, como sempre, situações tão estranhas se sucedem como se fossem cotidianas, simples obras do acaso.

O filme reforça algo simples: a ilusão viaja todos os dias com todos nós, habitantes das metrópoles ou não, divide o banco do ônibus ou acompanha-nos à mesa do almoço. A ilusão é mais presente do que o imaginário habitual, e o absurdo é apenas uma questão de interpretação de nossa rotina, de nossas consideradas "normalidades".


** Ficha Técnica **

Título original: La Ilusión Viaja en Tranvía
Ano de produção: 1953
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Alcoriza, Juan de la Cabada, José Revueltas, Mauricio de la Serna
Elenco: Lilia Prado; Carlos Navarro; Fernando Sotto
Origem: México
Duração: 88 minutos