O jovem casal brincava no último banco do último ônibus. Por um momento, enquanto os dois esperavam pelo ônibus, pensavam que já o haviam perdido. "Perdemos o último". E antecipavam em pensamento a caminhada que enfrentariam naquela madrugada fria. Agora, pareciam ter esquecido da aflição que os dominou por um tempo lá fora, e brincavam lá dentro. Parecia um desafio: quem contava a piada mais sem graça? Mesmo assim, riam por qualquer coisa, até por um casual silêncio que vez ou outra se instaurava ali no fundo. Com as caras de dúvida e apreensão, não bastava muito para caírem no riso, desfiarem lorotas, enquanto o motorista parecia testar o limite do ônibus, das ruas, das curvas, quase ignorando o semáforos vermelhos: era já tarde, muito tarde, e não só os jovens, mas o motorista, como o cobrador, queriam, precisavam antecipar a hora do descanso, do lar.
Os postes de luz, vistos de fora, àquela velocidade do ônibus, pareciam meras faíscas que enchiam o ar com um gás esfumaçante muito branco, e depois sumia. Ficava um para trás e logo vinha outro à frente. As ruas eram cortadas com o ronco grosso do motor à explosão. Explodia não só o combustível, mas como a intensidade dos barulhos do casal lá no fundo que podia ser ouvida até onde estava o motorista. Os gatos pingados que estavam naquele carro que fazia sua última viagem, repousavam com a cabeça encostada à janela; alguns sentiam a atmosfera silenciosa que espalhava-se pela cidade naquelas horas tardias. Era tudo bonito e tão feio, quase não se via nada, e o rasgar do ônibus pelas ruas parecia espantar apenas os cachorros, os únicos foliões e transeuntes naquelas avenidas e vielas.
O jovem casal parecia mais quieto, conversava em voz alta e ainda assim algo praticamente incompreensível por qualquer um que estivesse naquele ônibus. A carroceria do ônibus balançava conforme os desníveis, e por uma certa imprudência do motorista, por que passava naquelas vias urbanas mal conservadas. A prudência já fora abondanada há muito pelo motorista, tudo pelo aconchego de sua cama, pela comida esquentada que devia esperá-lo, escondia sob o pano de prato sobre o fogão. Parte dos gatos pingados adormeciam, espera-se, para todas as sortes, que o destino deles fosse o ponto final do ônibus, tão barulhento e tão salvador para o jovem casal, que há alguns minutos conformava-se com uma longa caminhada naquela noite.
Em poucos minutos, o ônibus cruzava a esquina da Matriz, serpenteava as ruas que findavam no largo do colégio municipal, tradicional, das paredes externas corroídas pela erosão de tanto vento, chuva e sol, e quase nenhum zêlo por sua arquitetura neo-barroca que parecia teimar a ser relegada aos posteriores somente através das fotografias. Os meninos não pensavam; o motorista e o seu companheiro também não; os gatos pingados não sabiam ou não queriam saber, queriam somente descansar.
O ônibus entrou na rua paralela ao cemitério; o jovem casal, forçando os olhos, o cenho tentavam ver os muros brancos e altos da necrópole. Dali, as únicas coisas possíveis de serem vistas eram as cruzes que apontavam para o céu. Eram suntuosas sobre os imensos mausoléus: quase-torres, pareciam indicar o destino das almas que habitavam os corpos ali guardados, tornados meras carcaças de ossos, sob as campas de granito dentro de seus respectivos esquifes.
A noite não era mortuária, era viva. Era escura e doce. Era fria com pequenos sopros mornos dos ventos do norte. E os meninos, quase em total silêncio, sentiam isso, sentiam arrepios até o momento em que o ônibus cruzou, e jogando o peso do corpo para a esquerda, quando o ônibus pegou a direita. O quarteirão demarcado pela muralha branca do cemitério terminava naquela curva sinuosa. O ônibus seguia o seu itinerário, com traços de ansiedade do motor, que não eram da máquina, mas do motorista, o homem que a manobrava. O jovem casal trocou olhares com uma senhora que acabara de levantar-se do banco e dar o sinal, e não sabiam porque sentiam alívio. A senhora desceu. E o motor resistiu, intensificando o seu ronco no declive que sustentava em primeira marcha. Terminado o pequeno morro, as cores que distinguiam o bairro do centro da cidade começavam a ficar mais nítidas - já estavam em frente à quadra de esportes, de onde se via uma luz fulgurando ao fundo. Vinha da casa do zelador. Os gatos pingados que dormiam, agora estavam acordados, pareceiam ter sido despertados pelo cheiro do local, peculiaríssimo, que reforçava que aquela zona suburbana era um microcosmo que não tinha relação alguma com o grande centro da cidade. Não tinha. Quase um outro país.
O menino, sonolento, com a vista embaçada pelo sono, percebia que já era quase hora de descer. Viu alguns dos gatos pingados fazerem uma espécie de saudação ou agradecimento aos últimos operários daquela noite: o sr. motorista e o sr. cobrador. Ele operava algum raciocínio para levantar-se do banco, acordar a namoradinha e dar o sinal para poderem descer. No entanto, algo imprevisível ocorreu. Ao chacoalhar os ombros da companheira, viu que esta permanecia estática, imóvel, sem indício de despertar da sonolência. Chacoalhou-a outra vez: nada. Ficou então preocupado. O corpo da garota não respondia à nenhum estímulo. Colocou a sua mão sobre o peito da garota, onde não conseguia sentir o tumulto de vida daquele coraçãozinho. O cobrador, lá da frente, sinalizou que haviam chegado ao final do longo trajeto. "Final!" E agora? Ele gestículou algo não inteligível ao cobrador, que não entendeu e que continuava a falar por sinais, "final". O rapaz gritou, "ela não está bem", "ela precisa de ajuda". O cobrador foi até ele, estendendo o braço e disse "é hora de descansar" e, abrindo um largo sorriso, alcançou o seu ombro e o balançou o suficiente para que o menino entendesse "é o fim", e angustiadamente o meninou gritou, "não pode ser o fim", quanto tudo se apagou.
O menino então despertou do pesadelo e viu ao seu lado a menina quase de pé, e o cobrador dizendo com os olhos "é a hora do descanso". O menino entendeu tudo e ficou bem por estar de volta daqueles sonhos fúnebres e de ver a companheira sorrindo para ele. Com uma angústia tamanha, abraçou-a forte logo que desceram do ônibus, quando despendiram-se do cobrador e do motorista com um leve aceno; os dois já estavam longe, alcançavam a distância. Ainda assustado, ele a mirou com um certo olhar preocupado, mas ainda enternecido, como se dissesse, todavia: "estar com você é tão bom", e desceram a rua, para mais alguns passos para os seus descansos.