sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A janta, amor...

Carla sempre se aborrecia com a enrolação de Rui para o jantar. Jantar posto, e era uma nova novela Rui largar a TV, o telejornal, queria se inteirar de tudo. Usava como desculpa o trabalho que lhe ocupava o tempo. Nisso, Carla, cansava-se de alertar Rui. Os chamados de Carla ecoavam no corredor, que ligava a cozinha à sala, sobre a comida que esfriava na mesa.

- Rui, deixa isso. Pôxa, não dá pra ver isso depois? Tem internet. Depois você vai lá e vê tudo que esses caras estão falando aí?

- Tá, tá...

- Ei, vai esfriar...

- Tá bom.

- Tá bom, nada. Vem cá!

- Já vou.

- Ah, tá. Vem e depois pede pra esquentar tudo no micro-ondas. Por acaso, tenho cara de palhaça?

- Não, querida, não tem. Mas que você é engraçada, isso é...

- O quêeee? Desaforento! Eu me esgoleando e você ainda fazendo piada com a minha cara.

- Não querida, eu só disse que você é engraçada.

- Ah, e você quer que eu encare isso como um beijinho no rosto. Me poupa, Rui. Todo dia é a mesma coisa.

- Tá, você tem razão. Todo dia é a mesma coisa. Então vamos fazer diferente.

- Ã...

- Sim. É só você, a partir de amanhã, não me chamar mais durante o jornal, certo?

- Ha ha!

- Adoro quando ri assim.

- Pára, Rui. Você sabe bem que isso não é um riso. Que merda! Caramba, eu fico pensando o dia inteiro no que fazer para o jantar, com carinho, tento inovar, fazer algo diferente, por você, por nós, tentar fazer com que a nossa vida não seja contaminada por esta coisa que chamam de rotina. Tento fazer um agrado, e você nem aí.

- Não é bem assim.

- Como não? Tem dia que você ronca aí no sofá. Emenda jornal no filme e o filme em outro programa, aí vai... Esquece da comida, esquece da cama, esquece de mim...

- Mas...

- Nem 'mas' nem 'menos', Rui! Estou cansada.

- Carla, precisa se revoltar assim? Olha, você está certa. Eu às vezes piso na bola mesmo. Às vezes você me liga lá do seu serviço só pra perguntar o que eu gostaria de comer, daí peço pra você fazer e, dependendo do dia, acabo nem jantando, porque depois bate uma preguiça, um cansaço aqui no sofá, maior do que a fome...

- Que bonito! Ele reconhece. É tão bonitinho...

- Tá, Carlinha, não precisa ironizar.

- Tá, meu poeta, me responde agora, na prática o que muda? Discursinho de que sabe que eu me empenho e tal, mas você faz alguma coisa pra mudar?

- Faço, claro que faço. Todos os dias reconheço pra você que não faço nada pra mudar. Já é alguma coisa...

- Deixa de graça.

- He! He! Tá bom. Vou parar de te encher, meu amor. Desculpa por hoje, e por todos esses dias. Eu prometo não aborrecê-la mais, juro.

- Rui, até quando?

- Até quando o quê, querida?

- Até quando você vai ficar fazendo essas juras ridículas de 'eu faço', 'eu reconheço', 'vamos mudar' e blá blá blá blá blá. Chega, né, Rui!?

- Calma, Carlinha! Eu estou sendo sincero contigo.

Um silêncio reinou por extensos trinta segundos, até que Rui o quebrou com uma pergunta.

- Você sabe o que eu queria agora?

- Não.

- Eu queria te dar um abraço, um beijo. Mas você tem que deixar eu chegar perto de você. Eu fico com medo quando você fica com essa cara...

O sorriso de Carla vibrou pela casa pela primeira vez naquela noite.

- Ah, seu bobo, seu bobo. E eu sou mais boba ainda por gostar de você, amar alguém como você. É só você falar assim para eu me derreter. Ai, às vezes como eu queria ficar com raiva de você, de verdade, pra você ver o que é bom. Mas eu não consigo, não consigo. Você me desmonta com essa cara de cachorro pidão.

- Eu não sou um cachorro pidão. Sou um gatinho pidão.

- Ah, ainda se acha. Posso com uma coisa dessa?

Quase infinitamente num minuto se abraçaram e deram-se um longo beijo. E outros trinta segundos de silêncio se apoderaram da situação até que Carla começasse outra vez:

- Posso te pedir uma coisa?

- Sim, querida.

- É uma coisa pequenininha, juro...

- Tá, Carlinha.

- A janta, amor...

Caminharam, então, juntos, para a ceia mais importante: a ceia de todos os dias.

Como todo casal normal, Carla e Rui precisavam de um frescor de vida, que poderia vir de uma noite de amor, de uma discussão. De lampejos de alegria, ou de contendas de choro. Conheciam o poder do micro-ondas para salvaguardá-los, especialmente Rui, nas noites de jantares nos horários trocados. Sabiam da especialidade que é entenderem-se no razoável da fina pétala brumada, dos dias difíceis adocicados pelo perfume sensível, irrequieto, único do amor.

Haja gostar. Desentendiam-se e amavam e amavam-se.

Um comentário:

Imira disse...

"Joga a chave, meu bem
Aqui fora tá ruim demais
Cheguei tarde, pertubei teu sono
Amanhã não perturbo mais..."
Adoniran Barbosa