"Cadê o lixo da estação? Quarta-feira, 19 de setembro de 2007"Mantenha tudo limpo, conservado; seja ecologicamente correto, jogue o lixo no lixo, faça a coleta seletiva, recicle, reutilize, reuse, redistribua. Utensílios que a princípio não serviriam pra nada podem ser de muita utilidade pra você ou pra outros; coloque a cachola pra funcionar e vai perceber que tudo pode ser renovado e útil de alguma maneira, ainda que não da mesma maneira da idéia original." É o discurso, hoje, muito utilizado por várias instituições e setores do poder público que parecem preocupados com o futuro do mundo tão cheio de lixo e poluição.
É tudo muito bonito, discursos até mais polidos que os carros das lojas da Cidade Jardim: reluzentes! Mas o método é totalmente falho, pois, se querem que coloquemos os lixos nos lixos, deem-nos lixos, porra!
Na quarta-feira, voltando da faculdade, por volta da meia-noite, estava ainda no centro de Sampa, mas não havia nada acontecendo no meu coração, apenas no meu estômago e me senti acoado pela vontade de comer um espécime qualquer de doce, especificamente doce de milho. Menos fome, mais desejo.
Não sou de comprar coisas de comer na rua, não mesmo. Porcarias já me bastam as minhas próprias, e ainda ter de comprá-las e colocar em risco minha saúde, é um alento a auto-destruição. Mas, dessa vez foi inevitável, o vapor de milho que embaçou o meu septo nasal tão logo desci do ônibus enquanto já me encaminhava à estação do metrô, bateu na região do córtex cerebral - região no cérebro responsável pelo reconhecimento e decodificação dos aromas - e a lucidez de quem planificava somente goles d'água quando chegasse em casa (o calor era enorme), desfez e estava então com uma vontade amarga (vontade contrária ao que se quer, mas, muitas vezes instintiva) e arredei à escada rolante que descia, dei ré e fui comprar o famigerado doce de milho.
Lá estava eu, com o cural embebido em leite condensado, como se fosse dono de uma preciosidade rara, mas era só a manifestação de um desejo bobo de gozar uma vontade e de vê-la tão nítida assim, provocando risinhos, que outros imaginariam ser de loucura (que não deixava de ser, de algum modo).
O pote morno com o doce parecia tão quente naquela já tão quente noite, batia 31° em algum dos relógios da Consolação... Tudo era um absurdo, o calor, a vontade, o doce, a hora, o local, mas de absurdo em absurdo que vamos enchendo nossas vidas tão normais com um pouco de graça e alguma magia. A minha magia era um prazer de comer ou só engolir aquele doce, que podia até mesmo ser / estar azedo, mas azedume nenhum superaria o condicionamento cerebral a que fui submetido logo que desci do ônibus e senti o bafo do milho, o cheiro de espiga que lembrou o quintal do meu avô, cheiozinho e repleto de pés de milho. Lembrei-me de como me escondia por aqueles pés e como me entertia entre aquelas espigas verdes tão apáticas, que ninguém dizia que depois poderiam ser desnudadas e amassadinhas e adocicadas para fazer doces tão gostosos como aquele com que me drogava no centro da cidade, naquele começo de madrugada.
Mas tudo tem um fim, até onde me ensinaram. O doce também tinha o seu. O pote do doce tinha fundo, facilmente visível, então, já sabia desde o começo que o prazer seria breve, o doce logo deixaria de ser doce de milho para virar então lembrança e, porque não, também doce?
O resultados de nossos prazeres hoje estão estritamente ligados a sobras e restos: desde a "doce" pizza de sábado, dela sobram as bordas, as azeitonas e a caixa; do chocolate, sobra o papel de estanho; das noites de amor, fica o látex; dos belos momentos da vida, as lembranças. Das lembranças damos um jeito e guardamos apertadas dentro da gente, mas de todos os outros precisamos nos desfazer de forma sustentável a não "machucar" o ecossistema. O pote e a colherinha de polietireno eram as sobras do sinóptico e tepe doce de milho, mas não havia onde depositá-los, quando enfim exterminei com o doce já na plataforma do metrô. Percorri toda a plataforma através de uma latinha ou um ensaio de uma. Cadê o lixo?
Dizem que precisa jogar o lixo no lixo mas não lhe dão lixo e então é luxo pedir felicidade pra depositar na vida? É extravagância pedir livros e escolas para as crianças, se não dão se quer um lixo pra depositar potes e colherinhas de doce de milho, no metrô? Logo o metrô, lugar público freqüentado por milhares de pessoas diariamente, numa de suas estações mais movimentadas, a Anhangabaú, não tinha umazinha lata de lixo lá? Pra mim, vão às favas os discursos ecológicos e hipócritas dos subsecretários das bundas escatológicas...
Muitas das pregações de diversos setores sociais não resultam no plano prático desses próprios setores. O poder público é um grande marqueteiro de movimento e causa sociais, mas é incapaz de desempenhar um política honesta de reciclagem e de orientação das toneladas de lixo que são produzidas nas megalópoles como São Paulo. Uma simples lata de lixo (na verdade, a ausência dela) mote do texto, onde doce de milho é o leitmotiv, já que sem o doce não haveria pote nem colherinha, não haveria sobra, assim, não recorreria ao lixo inexistente para me desfazer dele, não ficaria puto e não estava nem aí pra isso e não pararia por vinte minutos pra escrever isso aqui. Claro que eu não joguei o pote e a colherinha no chão, esperei até o desembarque e procurei a primeira lata de lixo para me desfazer do pote e da colherinha do doce de milho.
Doce de milho, motivo de divagação e teoria ética para a busca de um mundo mais equilibrado, não poderia nem supor, apenas um doce de milho...
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No Brasil, conscientizações sociais e ecológicas são assuntos de alarde, pela falta de educação e da falta de qualidade da pouca que existe. Sem a instrução adequada, torna-se muito mais complicado as pessoas absorverem as necessidades para se estabelecer uma comunidade verdadeiramente sustentável, assim, quando tem lixo nas mãos e não encontram uma lata de lixo, o lixo acaba nas ruas, nas calçadas, ou mesmo, em casos como o meu, nas plataformas do metrô ou dentro dos vagões.
Muitas preocupações pra já, para a nossa e para as outras gerações, para as crianças que estão aí e para aquelas que virão das trocas de chocolates e papel de estanho na praça, das sessões de filmes, com as sobras da pizza; e dos látex que sobrarão nas estantes das farmácias...