quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Matéria do Sonho

Em seu peito enovela dúzia de amores vividos. Num simples divago, passou a repensar. Eram tempos tão justos e mal aproximados da lembrança; medir o presente que virá a ser passado. Por quê? Porque este repassar do tempo lhe parecia mesmo justo e que, em algo, lhe enganava de viés; mesmo assim: justos. Tal como aquele aperto que comove o coração, e depois dissipa-se, como a água em poça, daquelas chuvas de verão. Era amor de primavera. A primavera se estendeu pela vida. Sinhá Linda. Nhô Formoso. Para quê os nomes, se os predicados que se apresentam os apresentam melhor do que os nomes, estes atestados feitos para que possamos saber (será?) quem somos?
Uma aturdida sensação "de nada", vazio constante, o fez de jeito para um susto maior, que até grito houve. "Senhor!" Eram as lembranças das sensações já não sentidas e que fluviou pelos olhos com uma fé sem certeza de que o futuro não era digno de temor: nem existido havia. Era algo de só pensamento e um ungüento pra bem, de vez em sempre. Toda a medida do sacríficio era uma dúvida do exercício da sinceridade - mais patrocínio de noites sem sono e sem um quente corpo pra esquentar os pés, lá embaixo das cobertas, invisíveis-brancos de tão gelados.
A solidez de seu rumo era um caminho de pedra cascalhada; louvava a força que ainda se esticava nos músculos, até à face, para um sorrateiro sorriso. Mas tão inibido, que mesmo o ar, que forçosamente lhe enchia os pulmões, naquelas noites frias, intuía ser matéria de respiro por ali, e vida. "Todos somos" - pensava - "um exercício de memória e um teste para o infinito pendente".
Era a justa condição de que lhe falavam; mas, o corpo riste, inseguro, incomparável em dor espera o tino da passagem da luz-ponte; da matéria vibrada em desencontro de se parecer mais umas dessas enunciações e ritos de natural e terna "simpleza".
"Ah, coraçõezinhos!", dizia pra si, "Coraçõezinhos quebrados, mas nunca, quando, dá dó, fabricar dor e arrependimento: não foi pra isso que fui criado". Mais um tempo, se empertiga a pronunciar - "Se rechaça a idéia, mas nunca o amor. Este segundo, como a mãe ensinou, era pra respeito, e merecia altar na louvação dos sentimentos". Ruma sempre pra verdade, como se fosse bê-a-bá dos pequenos. "As formosuras não são tão formosas quanto as formas de nosso querer bem a alguém".
Recitava: "Fé advém de cruz-credo, pra salvar-se da mágoa ardida, da idéia que aturde a fronte." Hoje não é ontem e amanhã, talvez, (sic) "nem vem". "Mas quem espera, espera, mesmo sabendo que nem vem."
Queria era um açucarzinho para adoçar a ponta da língua e as idéias que lhe andam bem temperadas, para, quem sabe, o ajudasse a resolver estes problemas de esperança. Mas não é todo arraso: a nutrição dos pequenos vai em popa.
"Quebramos tanto a cara querendo coisa que nunca será nossa, que sofrejamos na terra por essa infelicidade previsível, fraca, mas que nos perece". Descansa de suas conclusões, parece mais maduro sobre a plenitude e o descenso que a vida lhe trouxe; a realidade já não lhe parecia tão amarga, o destino das coisas, que se entende pelo seu, já parecia retumbada pela serenidade religiosa que reverberava em seus ossos, rigorosos e frágeis.
Ainda busca certa vitamina nos abraços que recebe, no reluzir das retinas, sob a tutela das lágrimas contidas, dos amigos que o alegra e traz um fulgor repentino da juventude e do amor. "Como me regenero nesses olhos de bem, de lembrança..." Parava, parecia soluçar, mas era o tempo e a verdade que lhe cingiam limites. Nhô Formoso era de Sinhá Linda; Sinhá Linda era de Jesus, era o que falava, mas a voz e o olhar, que acalentava os pequenos (já senhores e senhoras), dividia muitos e derretia a força que lhes torquiam; as mãos nos rostos e a fuga dos olhos nas mãos denunciavam a verdade que não queriam. Os pequenos eram grandes, mas Nhô Formoso só tivera "pequenos" por toda a vida. "É de fraqueza que vivemos, de beleza que nos motivamos, desculpem, minha gente, se não sobra cama e descanso no meio dessa bagunça das nossas conclusões, eu sei que assim não dormimos bem e ficamos fracotes, e na bagunça nem se encontra gente, vê só bagunça, mais nada".
Uma outra noite, sob a luz tênue do lampião num canto do quarto, repousa com o tempo contado; sonha. E é ali, nos sonhos, onde mais se enriquece. Foge a figura das sombras das noites nos olhos, não há desespero, e a paisagem que lhe aparece para caminhar é juvenil e cálida, como deve ser o "beijo de Jesus, quando encontrá-lo". Nada turba o teu corpo, quase desaparecido sob a manta listada que já esquentou também Sinhá Linda; sob a manta os minutos estão alçados à eternidade tão desconhecida, comentada pelo mundo de Nhô Formoso... Nessas divagações dessa vida, como podemos ser tão naturais, nestes pulsares espaçados que vão lhe trazer a redenção que jamais vida qualquer poderá conceder: "A paz absoluta, meus senhores".
"A água abençoa também os perdidos de sono ou os desencontrados dessa vida".
Mais um dia, outras horas de se saber que a realidade é precisamente inversa aos nossos desejos, e de que os nossos desejos são apenas misérias do nosso corpo. O que enriquece, para Nhô Formoso, são os verdadeiros sonhos, ainda que estes não passem de desenhos pintados no sono durante o repouso; os sonhos são maiores e neles é que se deve apostar. Dizia sempre, "Esqueçam os desejos, alimentem os sonhos". "Garotada, vocês não sabem de nada, por isso mesmo podem sorrir".
Há animosidade do sinal da nova manhã, o sol começa, filtra pelas frestas; mas é um "bom-dia" tão fino, como uma linha de algodão, que passa despercebida pelos olhos semi-cerrados, já despertos, de Nhô Formoso. Algo, em si, além da boa criança que sempre foi, faz o tinir para um sorriso que vai lá acordar os pequenos. Algo jovem, belo e indescritível; risinhos sonoros ocupam o vago tão enorme do quarto. Nem mais se cabe, Nhô Formoso: é criança. Vê de longe a penteadeira, deitado, sem o encosto de travesseiros que costumavam colocar ali todas as manhãs, logo que acordava, aquilo, às vezes, era um asco. Sobre a penteadeira havia uma foto de Sinhá, ali tão linda. Por hoje, parecia que respeitariam a sua intimidade e o deixariam só, compartilhar consigo aquela sensação de suficiência, e repetia pra si: "Que dure".
Passou pelo coração a fotografia do amor de primavera, e o sentimento de que se entendia agora com a natureza. Só, mas não em isolamento, calculou o gozo da hora; um tão querer desembocava num ganho infinito, num encher-se de amor. O perímeo de seus olhos amarelos, gordos e já sem o brilho da criança daquela manhã, bloqueavam a luz do mundo, que não denotava tanta esperança quanto "os sonhos, meus queridos, nestes tenho fé". Os olhos já não refletiam luz, nem percepção: bloqueados para a vida daquele mundo.
Nhô Formoso tinha já os sentidos todos arrefecidos e recebia o beijo de Jesus, enlaçado nos braços perfumados de Sinhá Linda, quando o mais novo dos pequenos entrou no quarto e viu que o pai era, mais do que nunca, só encantamento. Só pôde chorar e rir-se devagarinho, como sentindo a dor pungente da tristeza que sublimava alegria, pois entendia que o pai transformara-se em SONHO.

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