sábado, 22 de agosto de 2009

A polifonia de William Faulkner

William Faulkner, em foto de 1947

"Do outro lado da cerca, pelos espaços entre as flores curvas, eles estavam tacando."¹

Esta é a primeira frase de um dos principais romances de William Faulkner, O Som e a Fúria (1929). A voz que narra uma brincadeira, um jogo de beisebol, é a do personagem Benjamin, o Benjy. Nas palavras de Luster - neto da negra Dilsey, empregada da família - Benjy é "bobo". Benjy possui retardamento mental, tem 33 anos, e é a voz dele que primeiro ecoa para apresentar-nos o universo dos Compson, família do sul dos Estados Unidos que, como muitas, experimentam o dissabor da desagregação, do ódio, do esquecimento e da desfacelação do sentimento que houvera num passado remoto, o princípio do que entendemos ser uma "família".

Benjy é quem primeiro dá voz aos estilhaços da família Compson, formada pelos irmãos - além do próprio Benjy - por Candace (Caddy), Quentin e Jason; pelos pais Caroline e Jason; por Quentin - filha de Caddy; por Dilsey - a empregada, os filhos, e Luster.

O Som e a Fúria é dividido em quatro partes, e em cada uma delas a história se estabelece sob o ponto de vista de uma personagem. O único capítulo narrado em terceira pessoa é o quarto, o que tem a perspectiva de Dilsey, a negra, que mora com os Compson e trabalha para eles - como muitas vezes é lembrada, principalmente por Jason. Dilsey não narra sua história, pois há um narrador onisciente que preza por notar a vida de Dilsey entre os Compson, as angústias, as rotinas e, principalmente, as limitações impostas por uma fé de que os negros são apenas negros e devem apenas servir. Esta visão política e unilateral é bem nítida nas ações de Jason, o Compson sádico, calculista e, invariavelmente, temido por quase todos. Sentimento de temor que se aguça quando Jason Pai morre, e resta a Jason Filho a tarefa de ser o "homem da casa".

Os três primeiros capítulos são narrados, nessa ordem, por Benjy, Quentin e Jason.

Benjy, como já informado, é deficiente mental; Quentin é o Compson que poderia ter dado certo, pois um lote das terras dos Compsons (especificamente a parte que pertencia a Benjy) é vendida pelos pais para financiar os seus estudos em Harvard, mas, já na universidade, Quentin suicida-se, motivado pelo amor impossível por Caddy, sua irmã; Jason é o irmão autoritário, frio e trapaceador, que não medirá esforços para conseguir controle sobre a família e travará um duelo especial com a sobrinha, filha de Caddy, Quentin.

Através de todas essas vozes, Faulkner se utilizará de um expediente que se tornou uma marca de sua obra: enxurradas de fluxo de consciência, flashbacks e um emaranhado polifônico que costuma engendrar as múltiplas vozes de seus romances. Semelhanças de estilo de O Som e a Fúria podem ser encontradas em outros romances do autor, como Sartoris (1929), Enquanto Agonizo (1930), Luz em Agosto (1932), Absalão, Absalão! (1936) e Palmeiras Selvagens (1939).

Faulkner é normalmente tido como um escritor difícil, de linguagem muito intrincada, o que restringiria, em tese, o entendimento e a fruição dos seus romances. Não espere em Faulkner uma narrativa cristalina, heróica e vitoriana de um Walter Scott. Portanto, quanto à linguagem, é fácil observar, na leitura de cinco páginas de qualquer um de seus romances, o obstáculo a ser transposto. No entanto, a percepção deste "problema" será um dos principais ingredientes para que a leitura de Faulkner não seja um meio de nos desligar de um universo em plena ferveção, mas, sim, o processo de nos reconectarmos a este universo, sobre um prisma que, não fosse o agônico de Faulkner, não teríamos a dimensão de quão longe estamos de entender o que de fato nos constitui e alimenta os nossos desejos, amplificados por este universo que estudamos, vez ou outra, nos desligar. Portanto, a correnteza que nos levará a correr pelas páginas de William Faulkner é justamente espelhos estilhaçados utilizados como lúdicos quebra-cabeças; sendo que e a solução e a junção destes estilhaços é o que nos empurra na leitura para saber, e se haverá, alguma solução.

Estas vozes, estes consonantes disparos vocabulares saindo de todos os lados seguindo para todos os cantos apontam o que já sabemos na vida cotidiana: que a vida não constitui-se de um único ponto de vista: o NOSSO, mas de uma gama inclassificável de pessoas e de sentimentos que fazem com que o mundo incompreensível seja, se não solucionado, ao menos auscultado, já que em um tribunal justo para uma sentença justa é preciso ouvir a todos: réus, vítimas, testemunhas, advogados e promotores. Nas letras de Faulkner, o juíz é o leitor, somos nós. Mas a teia de suas palavras mostra-se, muitas vezes, deveras emaranhada, que não sabemos mesmo ao final do livro, se realmente, como leitores somos os juízes, ou novas vítimas deste complexo sistema de luzes e sombras que move-se sobre o universo do escritor norte-americano. Conforme o resultado, podemos sentir-nos réus, verdadeiros responsáveis pelas indissoluções e pelo reavivamento das tragédias, letra a letra, de um livro, de histórias que poderiam muito bem ser as nossas.



1
- O Som e a Fúria, página 5 (tradução de Paulo Henriques Britto - Cosac Naify, 2004)

Nenhum comentário: