sábado, 8 de agosto de 2009

O sr. Café e os pássaros

Era mais uma daquelas manhãs outonais, quando o sol finge que esquenta o dia e nos fazemos acreditar que isso é verdade. Mas era, no entanto, um dia de sol. O vento silvava entre as copas debutantes e flácidas das árvores que ladeavam a rua em que morava o sr. Café. Um nome estranho para uma pessoa estranha. O sr. Café era um homem de seus quarenta anos, mas parecia mais, mais. Espírito sisudo, semblante carregado que em nada era atenuado pelo bigode cultivado com certo afinco e vaidade. Com seu rigor tentava manipular ao redor, o preciso raio de notável um metro em que poderia agir, persuadir ou descolorir o tema vez alegre de alguém, de algum.

Sr. Café e sua calva cabeleira, testa larga, bochechas tingidas de um rubor quase artificial. Enfim, o sr. Café era, em sua essência, make up até nas oras de gozo. Café-da-manhã, "bom dia!", banho, "até mais!", sexo. Corpo robusto, tórax largo, dotado de uma considerável pelugem, que destacava-se em seu colarinho. Ah, para o sr. Café era um distúrbio os sons da natureza, ou qualquer som que não fosse escolhido ou produzido por ele. As suas esquisitices poderiam beirar a insuportabilidade mas, ainda, conseguia manter a neutralidade necessária entre os gostos pessoais e o mundo coletivo; afinal, por mais que quisesse, era um homem que ainda dependia das relações sociais, vivia em comunidade.

O que passaria pelo cerebelo do senhor sr. Café? Senhor sr. Café...

Voltando à manhã outonal, de sol frio, de sábado, o sr. Café acordou entendendo que tudo deveria se repetir outra vez, pois seria apenas mais um dia, dentre outros sábados em que não trabalhava, portanto, deveria cuidar dos afazeres domésticos, já que morava sozinho, não tinha filhos, enfim, era um excelente modelo clássico de solteiro que poderia ser comercializado em um antiquário. O sr. Café coa o café, em toda a ambivalência que o momento produz. O Café coa o café. O Café passa o café. O Café toma o café. O Café acordou para o café. Este era o tempo para ele, dele. Para o sr. Café, o tempo era cíclico, sem linearidade, ia e voltava, permutava-se em uma grande esfera invisível, e por esta razão nada era essencialmente novo, pois tudo não passava de repetição. E o sr. Café nunca lera Mircea Eliade. O tempo não era fantástico, nem legado de outras gerações, outros povos, o tempo era o tempo, sem divisões, como uma imensa roda que gira gira gira gira gira, tendendo planar sobre os mesmos lugares, as mesmíssimas coisas em que depositara fé desde que aprendera com os pais, já tão distantes residindo em seu córtex cerebral, o código de civilidade, que veio a confundir por toda a vida com o código que os humanos das mais variadas origens, classes e culturas chamam por felicidade.

Neste sábado, logo após o café, o sr. Café, notou um barulho incomum que vinha do jardim dos fundos da casa que dava para a janela de seu quarto. Largou a louça na cozinha, secou a mão em um dos panos de prato que estava sobre uma cadeira, e ainda mastigava o último pedaço de pão. Chegou ao quarto, quando percebeu que o som, antes seco, tornara-se um pouco mais estridente, portanto foi à janela abrir as persianas, entender aquilo que parecia um canto intermitente. Ao abrir a janela percebeu um movimento incomum que vinha do alto da laranjeira, cujo os galhos roçavam em parte da janela. Havia um canto mais agudo, que vinha de cima. Quase instintivamente, o sr. Café, colocou as mãos nos ouvidos para abafar o som. O mesmo instinto que o fizera levar as mãos aos ouvidos, o fez tirá-las dos ouvidos e escutar um pouco mais daquele canto que era filtrado pelos sentidos que parecia que, por um instante ao menos, o sr. Café deixara de lado o jeito circunspecto de encarar a vida. Agora, e mais para o sempre, parecia ter despertado outra vez, um despertar diferente daquele que fazia todos os dias para tomar o seu café, o seu banho, para trabalhar. O sr. Café avistou debaixo, no pé da janela, lá o movimento e barulho de um casal de pintassilgos, que não rivalizavam, mas que tentavam uma aproximação, um do outro.

O sr. Café não entendia nada de pássaros, e muito menos de seus cantos, ou das belezas como essa que a natureza o agraciou. Mesmo que o seu tema e a sua normalidade fossem tão avessos, tão afastados destas possibilidades de deslumbramento. Ressoou dentro dele um movimento de agradecimento, quase maternal, em todo jovial. O sr. Café sentou à cama e chorou. Percebia que por tantos anos trabalhara para que algo escapasse dele, sem que soubesse que este algo seria a sensação de vida que desfrutara ao ouvir o casal de pintassilgos. O pintassilgo macho fazia as vezes junto à fêmea, para que outras gerações de pintassilgos pudessem brindar outras gerações de indivíduos com os seus extraordinários cantos. O sr. Café entendeu. Percebeu que não teria o tempo todo do mundo, e que tudo era uma passagem, e que deveria compor um outro olhar sobre as coisas, sobre ele mesmo.

O sr. Café tomou seu banho. Afeitou o bigode, o que não fazia há anos. Presenteou-se com uma incircunspecção que não tinha desde os tempos de colégio. Era preciso. Havia algum ciclo, mas renovado. O sr. Café, muito quieto, refreou os ímpetos, não negou a si o desejo de ser o que quisesse ser, sem estabelecer-se em modelos. O sr. Café olhou mais uma vez para o espelho, franziu, sorriu e foi andar. Como aqueles que dizem "vou andar por aí..."

A vida lhe pedia caminhadas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ufa!!!! Até que enfim voltou a escrever, estava sentindo falta da delicadeza dos seus textos.

Escreva mais e sempre.

Fui

Samuel