domingo, 4 de outubro de 2009

O fim da filosofia e o bovarismo de Nietzsche

O Übermensch (Super-homem) e o fim da Igreja. A contradição entre Cristo e Igreja é ao que nos envereda o zoroatrismo. Nietzsche: quiseram anulá-lo associando-o ao nazismo. Ignorar o caminho positivo do Übermensch ou das palavras emprestadas à travestida ficcionalidade de Zaratustra. Mas era muito tarde, Nietzsche já estava louco, e desprezava tudo aquilo. Havia comiseração àquele silêncio. Deus está morto.

A literatura, a psicanálise e a loucura de Nietzsche.


Na Primeira Parte, Capítulo V, de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, há uma das cenas mais fortes e emblemáticas do romance. Raskólnikov sonha com a sua infância. Sonha com um açoite descabido que assistira de uma égua. Uma égua pangaré que carregava uma telega (carroça) desproporcional ao seu porte e tamanho, como reproduz a passagem do livro:

(...)E eis o seu sonho: está indo com o pai pela estrada que leva ao cemitério e passam ao lado da taberna; ele segura a mão do pai e olha apavorado para a taberna. Uma circunstância especial lhe chama a atenção: desta feita é como se ali houvesse uma festa, com um bando de pequeno-burgueses empetecados, camponesas com seus maridos, e toda uma gentalha misturada. Todos estão bêbados, cantando, e ao lado do terraço da taberna há uma telega, mas uma telega estranha. É uma daquelas telegas grandes às quais se atrelam grandes cavalos de carroça e em que se transportam mercadorias e barris de vinho. Ele sempre gostou de ficar olhando para esses enormes cavalos de carroça, de crinas longas, patas grossas, que caminham com tranquilidade, a passos cadenciados, e arrastam uma verdadeira montanha sem um mínimo de esforço, como se lhes fosse mais fácil andar puxando cargas que sem elas. Mas agora, coisa estranha, na telega grande há uma pangaré camponesa baia, pequena, em pele e osso, daquelas que ele via frequentemente e vez por outra se arrebentavam com alguma carga alta de lenha ou feno, principalmente se a carga encalhava na lama ou numa trilha deixada por rodas de carroça, e aí os mujiques sempre as chicoteavam de modo tão dolorido, tão dolorido, às vezes em pleno focinho e nos olhos, que ele ficava com tanta pena, tanta pena de assistir àquilo que por pouco não chorava, e a mãe sempre o retirava da janela.(...)¹

Logo depois, há a deplorável execração da pequena égua praticada no lombo, provocada pelos vagabundos, pequeno-burgueses, como o próprio autor os denomina, simplesmente por ela não ter forças para carregar aquela gente, aquela carga:

(...)- Açoitem até matar! - grita Mikolka - Já que se começou. Vou açoitar até matar!(...)

(...)- Onde já se viu uma eguinha como essa puxar uma carga desse tamanho! - acrescenta outro.(...)

-Não se metam! É um bem meu! Faço o que quiser. Senta mais gente! Senta todos! Quero que ela saia de todo jeito galopando!...(...)²

Após matarem a égua, o menino Ralskolnikóv perde o controle:

(...)Mas o menino está fora de si. Com um grito abre caminho entre a turba na direção da baiazinha, abraça-lhe o focinho morto, ensanguentado, e a beija, beija-a nos olhos, nos beiços... Depois dá um salto de repente e tomado de fúria investe de punhozinhos cerrados contra Mikolka.(...)³

Onde entra a loucura de Nietzsche? E a Psicanálise? Pois bem, não é novidade que Nietzsche já adiantara, muito antes do desenvolvimento dos estudos freudianos, que Dostoiévski, para ele, era o primeiro e maior psicanalista. Para ele, Dostoiévski, através das páginas naturalistas de Memórias do Subsolo, Crime e Castigo e Irmãos Karamázov investigou a consciência humana e a explicitou, como uma desrazão.

Ao ler Formas Breves, de Ricardo Piglia, revejo a cena de Crime e Castigo e a associação dela com o fim da filosofia e a loucura de Nietzsche - especificamente no capítulo Notas sobre literatura em um Diário:

SEGUNDA-FEIRA

Uma das cenas mais famosas da história da filosofia é um efeito do poder da literatura. Nietzsche, ao ver como um cocheiro castigava brutalmente um cavalo caído, abraça-se chorando ao pescoço do animal e o beija. Foi em Turim, em 3 de janeiro de 1888, e essa data marca, em certo sentido, o fim da filosofia: com esse fato começa a chamada loucura de Nietzsche, que, tal como o suicídio de Socrates, é um acontecimento inesquecível na história da razão ocidental. O incrível é que a cena é uma repetição literal de uma situação de Crime e Castigo de Dostoiévski (parte I, capítulo 5), na qual Raskólnikov sonha com uns camponeses bêbados que batem num cavalo até matá-lo. Dominado pela compaixão, Raskólnikov se abraça ao pescoço do animal caído e o beija. Ninguém parece ter reparado no bovarismo de Nietzsche, que repete uma cena lida. (A teoria do Eterno Retorno pode ser vista como uma descrição do efeito de falsa memória que a leitura produz).4

A partir dali, era o fim de Nietzsche. Dostoiévski poderia ter sido este Super-Homem, mas desistiu porque preferiu unir-se a outros cuja filosofia era outra, ou que pelo menos não dispunham de um pensamento que provocasse a mobilização do espírito humano? Difícil saber. Nietzsche morreu e Freud postulou a contrariedade intrínseca dos indivíduos, do homem, em 1930, em O Mal-Estar na Civilização. Para Freud, ser e pensar não são coincidentes, e posteriormente Lacan apenas reafirmou esta ideia.

E hoje não há como ignorar a loucura de Zaratustra e a serenidade pertubadora de Raskólnikov. Por mais que neguemos, estes nos mostram que somos todos ambíguos tentando, todo o tempo, sem nos darmos conta, fugir de nós mesmos, mas acreditando ser portadores da absoluta verdade e transparência, que já sabemos, que não existe. Não percebemos nada disso porque, de algum modo, nossa consciência está presa em um subsolo, e haja inconsciência para saber disso.


Bibliografia

1
, 2 e 3 - DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000 (tradução de Paulo Bezerra);

4 - PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Cia. das Letras, 2004 (tradução de José Marcos Mariani de Macedo)

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