terça-feira, 18 de novembro de 2008

A Triste ou Feliz Condição do Menino-Olho

O Menino-Olho não se vê. É o próprio olho, e não enxerga a si. Tem um vislumbre absurdo do mundo. O que lhe rodeia é vibrante, todas as cores lhe parecem mais intensas. As paixões, vistas de longe, mesmo assim, a ele se mostram dilacerantes. Não a sua paixão, mas as dos outros. Ele não se apaixona. Vive de olhar, observar. Até que se sucederia bom empregar algumas horas e ofícios para acudir, se tivesse, seus outros sentimentos, com uma menina que pudesse olhá-lo, com aquela mesma força com que ele olhava o mundo. Mas não dava. Não era maldade ou má-vontade. Não dava. Mas o Menino-Olho, ainda, se prazia com aquela sua vida. E como.

Todos os olhares eram para ele. Para ele, os trezentos e sessenta graus eram pouco. Queria divisar os seus sentidos. Partilhá-los um pouco com o ouvir de uma boa música que fosse; com o tatear de uma boa pelúcia que tivesse; com o provar de uma boa iguaria que lhe prouvesse; com o aspirar de um suave perfume que lhe coubesse. Não havia cabimento total para tantas sensações. A visão lhe ocupava boa parte do tempo de sua vida e Ouvir, Provar, Tatear e Cheirar eram sentidos de luxo, que para todos os outros eram de extrema necessidade. Segundo sua natureza, a ele bastava enxergar. Ver o mundo. Vigiar todas as coisas. Observar o que os olhos comuns e os menos normais podiam almejar chegar. A rotina do Menino-Olho era enxergar as diferenças com acuidade, as semelhanças com temperança. Mas tudo, bem regado, com um olhar de esperança.

O Menino-Olho, em um de seus relatos, lembrava que via sangues à tantas distâncias, tantas terras dali. Via tantas festas, não ouvia o que festejavam. Mas via que, por algo, brindavam. Essa vida de tantos olhares e tantas óticas divididas por tantas fronteiras delimitadas por estreitos, lagos, estradas, oceanos. Cabia ao Menino-Olho entendê-las só com o olhar, ainda que não lhe soasse familiar as línguas ditas, as canções entoadas naquelas cerimônias, umas de alegria, outras de tristeza.

Quantas brigadas, quantos chefes, quantas crianças, quantas pessoas, enormes, críveis ou não, podia se ver de longe pelo Menino-Olho. Não se sabia se não lhe cansava aquela sua natureza. O Menino-Olho podia vagar, viver de ver, olhar todas as coisas, mas necessitava de um instante, para acudir outros sentimentos que não o da visão. Todos se indagavam, menos o próprio Menino-Olho que mal dormia para não desligar-se daquele ofício que julgavam cansativo, que não haveria proteína de lágrima que resolvesse a sugerida escassez de energia. O Menino-Olho irrigava-se já com tantas lágrimas. Outros burburinhos surgiam, todos se perguntando se aquelas eram lágrimas sofríveis ou de felicidade. Como seria bom saber mais sobre aquele menino, dar-lhe melhor destino; não renegar-lhe apenas a fortuna de ver e não viver.

O Menino-Olho cria? Não se sabe. Sabe-se somente que via. Nem se se dividia crença com São Tomé. Traziam-lhe tantas músicas bonitas, do mundo; compravam-lhe tantas frutas de sabores espetaculares; cediam-lhe tantas texturas mágicas; transportavam-lhe aromas divinos. Tudo com a esperança de que se ocupasse, sim, com outras tarefas que não fosse o "ver".

O Menino-Olho não entendia nada daquilo, e lhes direcionava aquele olhar de ternura e de suavidade. Os acarinhava com o olhar. A todos restavam lágrimas desobedientes quando lutavam por um sentimento de esperança, quando esta já era findada. O Menino-Olho enxergava bem, e vivia tudo como outra benção ou oferenda de cores. Todos lhe desejavam mais do que cores, mas amores; muito além de luz e claridade; mas paixões diversas daquelas que mexem e remexem nos corações antigos, novos, perceptivos, brutos... todos os corações da boa matéria.

"Acudam o Menino-Olho! Façam-no muito mais do que só ver!" Os discursos imperativos eram esses, mas nada mudava muito. O Menino-Olho enxergava cada dia mais intensamente os instantes de nascimento do dia. Os instantes da vésper até aquela hora que a lua chega no cume do céu. Quando, depois, volta a descer pra voltar a dar lugar ao sol. Ou seja, o Menino-Olho enxergava tudo e todos, todo o tempo do mundo. Para todos, isso não era bom. Ele tinha que ter algo que lhe serenasse o espírito e lhe trouxesse outras sensações. Não podia se pensar em vida longa para um indivíduo que vive apenas de um dos sentidos. Mesmo os cegos, ainda que não vejam, vivem dos outros sentidos com todo o poderio que o talento os permite. Superestima os sentidos que possuem. Com os surdos não é diferente. Valorizam o enxergar. E os mudos, para os quais todo gesto é uma dádiva, a palavra mais bonita não falada, não escrita, nem sonorizada, só gesticulada. Poesia sem verbo.

Em todos os círculos discutia-se a condição do Menino-Olho. Se era humano alguém viver do enxergar e esquecer de todos outros movimentos de prazeres feitos para desvendar a vida. O Menino-Olho é um daqueles que precisam de cura, de ajuda. "Não é possível! Ele não fecha o olho..." Todos os raciocínios, todas as ciências despertadas para enveredar pela vida do menino, do Menino-Olho, que só enxergava.

A verdade das mais verdadeiras era aquela de que todos um pouco já sabiam, mas renegavam, talvez por instinto, ou mesmo por ignorância de não entender sobre a metafísica da vida. Discutiu-se muito sobre o Menino-Olho, até que decidiram que deixasse que a natureza lhe encaminhasse pelo caminho do olhar, pois, realmente, já não havia nada que pudessem fazer. O problema maior residia mesmo aí. Falaram, ouviram, agarraram e sentiram todos os perfumes. Aspiraram as maiores e melhores sensações para o Menino-Olho à busca de uma cura para o que julgavam ser doença. Tsc, tsc. Faltou-se enxergar com olhos reais quem era verdadeiramente o Menino-Olho. Diferente, no início, poderia assustar. Mas o Menino-Olho era muito são; nunca apiedou-se de si. Ria infinito nas manhãs. Nunca entristecera ninguém, e só dirigia olhares benevolentes aos outros, desde o início...

Foi então que perceberam que não havia doença naquele menino. Aliás, se houvesse, a doença não era dele, mas, sim, dos outros olhos que não o enxergavam bem. O Menino-Olho vivia bem com sua particularidade... A doença fora diagnosticada nos olhares que vinham dos olhos que não eram os do Menino-Olho. Percebeu-se, depois, que o entendimento melhor do universo particular do Menino-Olho conferia-lhe paz; o respeitavam mais, como um de todos. Entenderam o quanto as diferenças se espalham e migram, e que não há como habitar no social sem cada um com o seu jeito de ser: os seres são tão díspares. Outros reivindicariam o direito de respeito também: suas diferenças. Enfim.

Não enxergavam o Menino-Olho como se deveria. E o Menino-Olho, feliz, consigo não enxergara, em nenhum momento, as coisas com olhares de desesperança com os olhares que direcionavam a ele.

Mas tudo já é de um outro tempo, e as maneiras se encaminham melhor agora, com o entendimento das diferenças, para mais alívio.

Uma questão de percepção, muito além do enxergar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro ler que escreve... Cada dia mais me encanto.
Bjs