quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Carta

São Paulo, 1° de Outubro de 2008.


Minha querida,



quanta saudade, quanto sentimento quando tudo me parece que vai se dissolver em vão. Quero vê-la, mas há um espaço enorme entre a minha vontade, que somatiza nessa ausência simultânea de um e de outro. Chove muito aqui em São Paulo. Agora o relógio marca 19:06. É uma quarta-feira abençoada. Tudo de bom aconteceu. Só mesmo a distância entre nós faz com que a situação não seja melhor.

Hoje recebi um telegrama: o convite para um novo emprego. Bem, você sabe que isso não é bem um convite, mas o resultado de um esforço enorme nos últimos tempos, para que pudesse então encontrar um novo trabalho. O bico como professor de inglês estava me consumindo energia e me rendendo pouco dinheiro. Não que eu não gostasse de lecionar, mas, você sabe, era mais pela paixão pelo conhecimento (pois sempre acreditei que se aprende mais ensinando do que o contrário) e de poder passá-lo a alguém, do que pelo salário, muito baixo. Aquela escola era pequena, não dava para ter pretensões maiores ou tentar algo diferente.

Posso dizer que a experiência como professor foi valiosa. Lê-se, todos os dias, em qualquer lugar, que tudo que é vivido é riqueza que soma para a nossa experiência, para toda a vida. Ainda que isso seja um discurso batido, nunca duvidei. Sempre acreditei. E você sempre me culpou e me acusou pelos meus pensamentos e discursos românticos. Talvez porque, em algum momento, acreditei piamente em que o mundo iria mudar, bastávamos nos predispor à revolução. (Estou tomando um café coado, talvez o mais gostoso que fiz nos últimos dias). Uma breve história dos homens nos livros me fez acreditar que era só erguer a voz, reunir os camaradas que estaríamos a meio passo de um "mundo diferente", lembra? Devia ter uns dezesseis; mas você, sempre mais madura que eu, sempre me disse que o negócio era "trabalho, determinação e suor". Hoje sei mais do que ninguém, neste labirinto de pedra e fumaça que é essa cidade - pela qual me apaixonei na mesma intensidade que senti indiferença no início, era como não se sentisse esse chão - que a batalha é muito mais complicada do que aquela que vivemos nos livros. Não que aquelas tenham sido fáceis, mas é fato: não foram vividas por nós.

Suas palavras, em cada dia, em cada bloco do meu caderno, estalam difusas e logo se ajeitam dando forma à verdade embutida nelas, às quais, pouco a pouco, vou me acostumando e me adapto nestes dias, nesta cidade sem você. Quando digo que me acostumo não quer dizer que não sinto a sua falta ou que essa diminui com o correr do tempo; é o contrário. Sinto tanto a sua falta, que hoje comprei flores, iguais àquelas que a presenteei em seu aniversário (flores mistas do campo, lembra?) para colocar no meu canto preferido da sala. As flores, o maço, o cheiro-verde lembra você. O meu olfato estava tão desacostumado desta doçura, com todos os dias aspirando o monóxido de carbono do ar e as outras asparezas daqui, que quando cheguei em casa, deitei-me no sofá, arrumei as flores no vaso, fiquei a contemplar aquele espetáculo particular de ter e sentir flores do campo no apartamento; não foi uma fuga do mundo, foi uma corrida no pensamento para os seus braços.

Deixe-me continuar sobre o telegrama. Pois bem, o trabalho parece ser bom, não vou receber muito no início, mas vou fazer o que gosto de fazer que é desenhar. Vou trabalhar num escritório de design, este filiado a uma das grandes agências publicitárias daqui de São Paulo. Algo mais promete para o meu desenvolvimento profissional por lá, pelo menos é o que eu imagino e espero. Estou apostando que "desta vez vai". Estou muito feliz, claro. Mas não quero fazer muitas projeções. Um dia por dia. Certo? Sei lá, tenho aprendido muito sobre viver e a sobreviver (e viver sozinho em uma outra cidade onde ninguém te conhece ajuda nisso) neste meio sempre instável. Ah, já ia me esquecendo de dizer: recebi o seu cartão! A sua caligrafia me trouxe paz nestes dias; e o sol sorrindo que desenhou no canto do cartão me fez mais alegre. O sol sorrindo é a sua melhor caricatura.

Mas não quero imergir nesta contemplação do "coração solitário". Eu comecei a carta falando de saudade, mas não quero terminá-la neste tom, ressaltando o sentimento de ausência, a dor que vaga no peito, só porque não a vejo há meses. "Só" me parece não ser uma palavra muito apropriada, porque isso não é pouco, acho. E "só" também é um vocábulo que designa solidão. Tudo o que não se quer para os corações aflitos.

Quando digo que tudo de bom aconteceu, não está restrito à notícia do novo trabalho, às flores que adornam meu canto. O que "preenche" este tudo é ter vivido a sua presença hoje como não fiz desde que nos despedimos naquele janeiro gelado. O que aconteceu que não conseguimos nos tocar, sentir o hálito quente no pescoço e os nossos sussurros ordinários no pé do ouvido? Temos os nossos compromissos, as nossas responsabilidades, os nossos afazeres, as nossas dívidas, os nossos prazeres, as nossas vidas, mas acho que merecemos um pouco mais: nos merecemos. Concorda? Quando decidi redigir esta carta estava pensando "furiosamente" nisto. Não sei nem se o advérbio de "fúria" aqui cabe bem, mas é fato de que a sua ausência tem me causado fúrias constantes. Não de você. Fúria de mim. Fúria de todas as coisas que nos aparta. Fúria de toda a verdade estabelecida, que ressoa desde o momento que tiro os pés da cama e tenho que me deparar nesta cidade com os gestos e rudezas das pessoas que cruzam o sinal, o meu caminho, esbarram e não se importam com nada, mesmo que por um sinal, um gesto pequeno de absolvição.

Mas a finalidade maior desta carta é a de lhe dizer que estou bem. Poderia ter lhe dito por telefone, coisa que nos acostumamos neste tempo de fazer: viver a vida entre os cabos e as fibras óticas. Não fossem estas conexões poderia dizer que já nem me lembrava de seu respiro. Mas você sabe que estou bem; da ligação que lhe fiz ontem, quando estava quase adormecida, com voz de sono.

A carta surgiu porque me veio o desejo de registrar a notícia em algo que pudesse depois ver e rever, reavivar, tocar. A carta tem isso de bom, ainda que não carregue a praticidade de um telefonema, esta não se perde no tempo, nem no ar como as nossas vozes. A lembrança capta um momento ínfimo de nossas verborragias. A cartas registram tudo o que se quer e lá ficam até o momento que se decide rasgá-las ou desfazer delas. Cartas são declarações eternas. Podemos, vez ou outra, arrancá-las de nossos objetos e rever aquelas palavras, que num momento, podem ser restabelecidas com o frescor de quando foram escritas. Eu gostaria justamente disso. De deixar registrado o dia, a hora, a chuva, o café saboroso (já estou na terceira xícara), as flores, a lembrança que remete à sua figura. Está tudo aqui registrado nas pautas que serão carregadas por pessoas que nem conheço até chegar em seu portão. Para, logo, rasgar o envelope, tirar-lhe um dos cantos para ver do que se trata, o que naquela folha encerra.

Meu anjo, não encerro nada, apenas abro pra você, como nunca (como os poetas) d'antes, o meu carregado sentimento de amor. Almejo que estas minhas palavras borradas por esta caneta (que solta tanta tinta) reguem em algo o seu espírito, que lhe conceda, assim como a sua caligrafia e o seu "solzinho" me fizeram, um pouco de paz e de energia renovada.

Por tudo isso, posso dizer que a minha quarta-feira foi abençoada, como espero que seja a quinta e a sexta. Que este sentimento de benção se perpetue pelo fim de semana, e esteja às meias e prossiga até o dia em que eu possa encontrá-la outra vez. Quando então poderemos, não só com os telefonemas e cartas (ainda neste mundo das conexões virtuosas), tatear-nos e dizer-nos: "É mais belo o vivido quanto mais o sonhado por vivê-lo". O sonho está neste encontro, que abro e antecipo por meio desta carta.

Tenho quase certeza que, por todos nós, nada se dissolverá em vão.

Um beijo terno, do seu

Amor

Um comentário:

@amaurit disse...

meu amigo (se ainda não o sou, quero ser), esse blog vai além das palavras... isso aqui já tem o formato de um veículo para propagação de idéias, boas idéias. Que bom!