Doeram costas. Mas o bom que foi compensou. Assisti os dois filmes pela primeira vez - deslizei a quarta na película. Estas sessões, como muitas, têm sido frutos de outras sessões frustradas ou mesmo de um espaço não programado no meu tempo que esparge no ar sem dar-me conta ou o direito de percebê-lo esvoar.
Quando saí de casa, na tarde daquela quarta, não fiz projeções do que poderia fazer, ou mesmo da sessão que viria assistir. Tudo é algo difícil no que tange a programar-se na cidade grande: em horários, em sessões, em passeio, em pensar... A projeção era só aquela na tela, nada na cabeça.
O projeto de felicidade vem nas manhãs mais otimistas. Nos espaços mais vagos que propomos nossa mente passear, na busca da produtividade, alheia às obrigações que nos definham. Enfim, estava eu lá, por assistir A Paixão de Anna (1968). Aquela paixão. Outra vez Max von Sydow. Outra vez Liv Ullmann. Outra vez Bibi Andersson. Outra vez eles; eu a revê-los.
O velado jeito de Bergmann apresentar uma violência de jeito velado. Verossímil, até mais que o outro filme da mesma vertente do diretor, Vergonha (1968). Vergonha é o filme que precede ao A Paixão de Anna. Neste primeiro, Bergmann pinta os horrores de uma guerra, e as conseqüências dela. Duas partes. A primeira, a guerra propriamente dita. A guerra exterior de que Evan (Liv) e Jan (Max), um casal de músicos, tentam fugir buscando refúgio numa ilha, a mesma ilha do Paixão, a ilha de Faro. A "vergonha" são as execuções sumárias, a dor, comandadas pelo coronel Jacobi (Gunnar Björnstrand), que acusa o casal de colaborar com os rebeldes. Depois dessa guerra há aquela outra, a guerra interna, a dos conflitos psicológicos, muito mais intensa e duradoura que a primeira, que colocará em xeque as moralidades, mais do que ideologias. A Paixão de Anna, talvez, é um filme mais estruturado ao definir esses conflitos, pois, Vergonha, em algum momento, parece carecer de continuação ou mesmo de detalhamento no que diz aos conflitos interiores dos personagens. Pode-se dizer que A Paixão de Anna funcione como esta continuação. O espaço é o mesmo. E o fundamental: a ilha de Faro.
Assistir Paixão deu-me esta impressão, até, porque, os dois filmes estão separados apenas por meses entre a produção de um e de outro. O próprio Bergmann diz, em suas anotações, que o projeto inicial era fotografar Faro como o Reino da Morte, revezando paragens luminosas com outras de horror, para compor um personagem que vaga pela ilha que anseia por algo que está muito distante. Isso pode ter ajudado a unir o sonho ao executável. Atmosfera onírica composta em A Paixão de Anna, com a sua fotografia colorida substituída por flashes em preto e branco granulado, quando o desejo é de demonstrar o Reino do vazio da morte, que vemos Anna (Liv Ullman) imergir e depois reaparecer.
Faro, a ilha, é o outro personagem. Talvez o mais importante. Como não é novidade, Bergmann utiliza o espaço geográfico muito mais do que só locação para as filmagens, mas trabalha-o como o que vai propor e definir o destino, as limitações - ou ilimitações - a que se propõem os personagens das angústias finitas - ou infinitas. Para a fotografia do filme, comandada por Sven Nykvist, a ilha é a ambivalência dos sentimentos de repouso e angústia para Anna buscar paz - ou não - depois do trauma de perder a familia num acidente automobilístico.
Ao assistir A Paixão de Anna, que não se diferencia em muito da de Jesus, percebo outra coisa nova, mas não tão nova assim: a descarga emocional que glutimos todo o santo dia. Nos dias santos. Nos pagãos. Engolimos amargo, o que nos sobra, e que vamos por resistir. Com temor a nós e sem temer tais estranhezas. Porque não há porquê temer, se não - ou um senão, as ilhas compridíssimas porque vastamos, caminhamos e que serão engolidas. Engolidas mais do que pelo mar, pelo horror indisfarçável e invisível que tentamos não nos submeter, pelo menos quando sobre o travesseiro estivermos com nossos pensamentos, tentando resolvê-los como mais uma das aritméticas da nossa sobrevida.