quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Aura

Aura tirava o excesso de areia das pernas. Batia as mãos nas coxas, espanava todos os grãozinhos impregnados à sua pele, branca tal como as falésias que davam fim à costa da praia em que estava. Podia se ver de lá, de onde estava lavando as pernas nas ondinhas do mar, as falésias de calcário, que mais pareciam gizes gigantes, com os quais se poderia escrever até no céu, marcar até no mar, na água solúvel que só não desmancha sentimentos sólidos.

Aura deu alguns passos para ir ao alcance da água, tirou a areia depois de ver-se saciada de sol, sem um bronze digno pois o dia não era mesmo de sol. Aliás, os dias não eram de sol já há algum tempo. Onde estariam os sóis que bronzeariam Aura? Muito poída com este tipo de pensamento, já nem se desgastava nestas lucubrações.

A sessão de sol acabou ali. Aura se levantou de sua toalha estendida na areia, apanhou o chapéu e foi até o mar vivificar o seu ritual destes dias do descanso. Por alguns minutos, ficou a levar, com as mãos em concha, água nos braços, no dorso, nas pernas e no rosto. Uma tarefa simples e tão despida de outras necessidades - não fosse a procura do bem-estar - que todos aqueles momentos pareciam ser mais suficientes do aqueles que se escolhe para viver aventuras. A aventura era não desafiar o corpo e respeitar a serenidade das coisas, optar pela beleza e a simplicidade, não ceder a tentação das grandes cidades. Preferir o íntimo lúcido aos portes insanos que o dinheiro oferece.

De alma pronta e corpo lavado, Aura olha pra frente e segue o caminho da volta à toalha e aos pertences que deixara ali pra Deus tomar conta. Deus não só tomara conta, como lhe dera uma bola colorida, que repousava sobre os seus óculos escuros. Mal dera o presente - nem houve tempo para espanto - Deus o pedia de volta, na pele de dois meninos mais corados que ela. Até então não havia reparado na presença das crianças - tudo lhe parecia um silêncio honesto. Pois então as crianças acenavam de longe, pedindo para que lhes devolvessem a bola. Meio desengonçada, Aura tentou devolvê-la com um chute, mas caiu: ela gargalhou com a própria trapalhada; os meninos não riram e correram em seu socorro. Nem foi preciso, no ínterim da corrida dos meninos, Aura já equilibrava-se, já de pé, com a bola colorida nas mãos, pronta para devolvê-la.

Os três entreolharam-se por um instante, com uma seriedade estranha, que acabou numa explosão de risos de vários níveis e de gargalhadas simultâneas: Aura lembrando-se do tombo trapalhão; os meninos percebendo a preocupação exagerada. Agora todos riam: Aura descorada e os meninos corados e, até mesmo, de algum modo, a bola colorida.


Num ímpeto, Aura se curvou e os abraçou. Eles, mesmo sem saber quem era aquela mulher com quem partilhavam risos de intimidade, a abraçou até onde os bracinhos podiam ir. Aura se despediu com um beijo na testa de ambos, e os meninos voltaram para onde estavam, com a bola colorida, a passar a tarde de lazer.

Um caso exemplar, não se poderá perceber tamanha agudeza da beleza das coisas; e a vida engrena mais um de seus movimentos para se valorizar o que realmente há.

Depois de algumas horas passadas, desde o episódio da praia, Aura racionalizou sobre tudo, e lembrava-se do aborrecimento inicial de não poder tropicalizar a cor de sua pele, porque o sol não a visitara naqueles dias de raro descanso.

Mas tudo aquilo agora perdera toda importância e Aura não conseguia pensar em outra coisa senão na bola colorida, nos meninos, no tombo e nos risos daquela tarde. Aura não ganhara cor, mas ganhara uma bola colorida que residiria para sempre em seu imaginário: o mote para um riso qualquer; assim como aqueles meninos que, dali por diante, ririam para sempre em seu coração: a circunstância de seus dias.

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