sábado, 25 de agosto de 2007

Seriedade

As pessoas são muito sérias. São sérias. As situações mais bobas encaradas com uma retidão necessária. Pessoas pensam na seriedade como o caminho mais fácil para a felicidade. A felicidade deve ser assim - cultivada com um mau-humor, cara de vômito, já que quem se preza em nossa realidade não ri à toa. Ria no banheiro. Faz-se mais dinheiro com a cara fechada, cuspindo as palavras que podiam ser pronunciadas com entendimento. Lógico, os miocárdios ficam mais afetados, os espelhos trincados, mas danem-se os miocárdios, pois, os sérios não carecem de coração, carecem da plena seriedade, retidão, quitação de imposto, conserto do pneu, da porta do guarda-comida, dos faróis de milha do popular do ano.
Neste ano não houve um ímpeto de ao menos um riso de soslaio, de despretensão. Para quê? Por quê? Há que se cuidar do jardim, e flores não sorriem; guarda-se as mágoas sob o véu deste pecado do riso impróprio. Explodam-se os espelhos, nos debruçaremos ante às poças d’água para o acerto da gravata e da cara séria. O retoque no bigode e nos dentes postiços que exageram em seriedade, mas, no fim, seriedade em nenhum momento é exagero. Copula-se, especula-se, à revelia, sem prazer, pois, prazer também pode não ser sério, copula-se, fode-se pelo dever, com a seriedade do pinto riste a adentrar pela primeira racha que lhe acolher famintamente úmida pela sina da biologia feminina. Cuspa-se lá, o pinto com as gotas do prazer sob a seriedade mais bela já vivida e lubrificada ante o jogo pecaminoso do entretenimento.
Dizem que somos tudo que há de perfeito, à semelhança do Criador, não somos? Que sejamos sim, sérios, pois, o único meio de sermos perfeitos é sermos sérios. Ouvimos as músicas, já as decoramos em nossos corações, sejamos mais sérios, as anotemos em nossos cadernos, pois os felizes e sérios, anotam a verdade a sintonia, toda a melodia deveria ser anotada já que não é sério confiar na emoção e muito menos em nossa vã, frágil e terna memória. Esta sala é tão séria, esta escrita é tão séria, a nossa roupa é tão séria, achamos que achamos a felicidade. A seriedade é co-irmã deste bem que faz todos se sentirem bem. A nossa juventude deveria ser mais séria, aprenderia a como reter-se ante as desvirtues, teriam mais saúde.

*


No parque há dezenas de crianças, muitas organizadas num grupo, e num destes, diferente dos demais, as crianças quase não falavam entre si, pois, sentadas ao tapete verde do gramado bem aparado como se medido num sopro de anjo (com um olho fechado e outro no pasto pra ver cada mato de grama saliente para a devida poda), as crianças pareciam centradas num pensamento único, alinhado em cabecinhas diferentes; era então o momento do desato, da agonia do mundo sério. Rompeu-se o silêncio, quando a seriedade do mundo explodiu em coro e dividiu-se em vários pedacinhos, uma das crianças disse a outra ‘quer brincar?’, da outra nem uma palavrinha, só o balançar dos ombros com uma firmeza que nenhuma palavra verte a não ser quando acompanhada na explosão maior do sorriso. Sorriram. A verdade alinhada aos eixos testemunhou que na seriedade há fome e miséria, além da virtude e do riso infantil, a seriedade serena sempre foi caminho nobre da responsabilidade, mas nunca soube entender os desacordos. As crianças sorriram, vêem-se perninhas tinindo de medo e de vergonha, de gosto e de felicidade. Mais uma citação descabida, só com um desatino, pra tornar um mundo sério num mundo da criança desabitada que vê no refúgio da vida o sorrir como o melhor dos alimentos.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Flores na janela

Querem que eu, absolutamente, encontre as chaves de casa tão perdidas quanto eu mesmo, mas, jogadas num canto do banco daquele ônibus que dobrou a esquina. Ainda assim, desço do ônibus. Minha procura é outra, estou à busca desta minha relevância pela minha idéia de ser o menino da biblioteca, o menino que lustrou livros, o menino que vendia revistas para comer e dar-se o mínimo à subsistência contínua de estar no meio de todos os da cidade.
Desde que me peguei a essa situação, estou tão incompreendido por mim, e não julgo os meus que não mais me entendem, tendo a levá-los pela consideração merecidíssima, por sinal. Pelas tantas horas cansadas de questionar quem seria eu e não obter resposta. A resposta está aí, na certeza de não tê-la, de não advinhá-la, de não supô-la, de nada, de apenas estar certo de que nunca estarei certo e nisso já encerra em si o assunto que não seria abdicado, mesmo que não tivesse constância. Sou a própria substância que julga, setencia, culpa-se e cumpre a pena de ser o que já não se sabe. Sou essa idéia. Já é suficiente. Mas não sou suficiente. Tendo a querer no todo contrário, no todo obtuso, no todo inconseqüente, no todo de minha alma que despedaça-se, despetala-se ancorado e aportados sobre a janela, as flores que me cheiravam estão todas divididas em unidades, brancas, vermelhas, desespero? Não, sou as flores despedaçadas, sou esse interminável questionamento e o deplorável senteciamento de ser como flores na janela tiradas do jardim úmido.
O pé de feijão, os cabelos de Rapunzel, meu pé e minha mão, minhas sementes desta minha gloriosa ilusão, que devaneio, que alegria! É tão real que nem parece o mesmo dia, mas as horas não são tão formidáveis quanto o coração pensa, tudo é uma questão de suportar o intruso e entrever-se no rio caudoloso desta tortuosa história de nossa concepção. Chaves perdidas, pulo as janelas, danifico o jardim, desmorono a terra das flores da janela. Mas, já estou perdido: conto as moedas sobre a guia, tão estreita quanto os meus pensamentos, conto o dinheiro do futuro.

domingo, 12 de agosto de 2007

Camarada

"Você podia estar aqui..."
A vida não é assim, construída com "podia", "deveria", "queria". Os sonhos ainda são muito discutidos pelos filósofos, pelos poetas, pelos engenheiros, pelos arquitetos, pelos cozinheiros e pelas lavadeiras de todo o mundo, mas ainda não chegou-se a um consenso sobre a matéria das coisas sonhadas e das coisas materializadas, se estas eram mesmo sonho ou se eram feitas pelo propósito de existirem, que nossas mentes apenas anteveram.
As coisas estão ainda mais relativas se comparadas às dos meus 3 anos de idade. 1982, era esse o ano. O início da consciência de que se está num mundo, num negócio enorme, que nos olhos de uma criança, parece ser feito de pessoas iguais, as pessoas apenas diferem-se em seus tamanhos. Meus tios, irmãos de meu pai, eram mais baixos que os meus tios irmãos da minha mãe. Entre tios grandes e baixinhos, permanece mesmo o encanto único de ser o menino carregado ao colo por todos, todos fortes, pelas minhas tias, lindas, que já mostravam pra mim, desde então, que a vida podia bem ser um momento de cuidado eterno de todos conosco, onde sempre deveríamos ser protegidos e carregados ao colo. Não é, pai? A tua ausência física hoje não reflete-se simplesmente na falta daquele que mais me carregou ao colo, naquele que mais tinha força entre todos, ainda que fosse baixinho, com 16 eu já o ultrapassava e o zombava que não conseguia mais enxergá-lo, de tão alto que ia ficando, e olha que eu não sou alto, mas, na verdade, o senhor que era grande demais, e eu ainda tento alcançá-lo, como se ainda batesse as palminhas no teu peito, esticando minhas mãozinhas para te agarrar e me pendurar em teu pescoço, tranqüilo: estava contigo.
Hoje não é o seu dia. O seu dia é sempre que lembro de você - todos os dias. Na criança ou no jovem mais pessimista que poderia ser nos meus 17 anos, quando adoeceu, não seria imaginável os 10 anos desde que você virou estrela, ou um exercício de pensamento eterno dentro de todas as minhas possibilidades, que resumiam-se no Camões que fiz questão de escrever na pedra que te guardou:
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
Mas, todo o motivo de tentar ser o que desejo, ainda reside numa ternura que não verei mais em ninguém, uma força que não saberei mais espelhar, numa mão que não poderá mais me segurar, ainda que apenas para um afago na tristeza ou para um abraço de recompensa.
A vida pela busca de status, de diferenciais baseados, em boa parte pela recompensa material, cansa-nos, desgoverna nossos sentimentos mais nobres, que é o de simplesmente estabelecer-se e fincar a felicidade no território tão insólito que deixam hoje a todos, crianças, jovens, adultos, senhores. Estou entre eles, pai. Você está assistindo filmes muito coloridos ou, no mínimo deitado na tua rede que ficava estendida na área de casa, em todo caso, está descansando de todo o cansaço desse negócio enorme que é o mundo que me deu de presente, me presenteou com essa caminhada sem fita de chegada.
E ainda caminho, viu, pai? Sem você aqui pra ver, pra puxar a orelha, ou pra dizer se o caminho é certo. É certo que, por você, caminho...

sábado, 11 de agosto de 2007

My Heart Is a Lonely Hunter


Ouço um jazz latino, uma música de piano e ouço (ou imagino) uma espanholita a latrinar nos meus ouvidos. Um copo de Martini sobre a minha escrivaninha combinaria com a ocasião, se pelos menos fosse adepto ao ritual da regação do espírito, nestes momentos em que a solidão solitária desemboca sem hora pra dormir, nós conosco, às 5h08 da manhã. Tranqüilo, ninguém te espera esta manhã, ninguém vai perceber que não está lá. Sem ninguém para observar o nosso estado nesta manhã de ausência externa e de presença consigo mesmo, não há ninguém para medir o nosso absurdo, e não há ninguém para opinar, compartilhar, xingar, carregar-nos da mesa ou tirar-nos do chão. Ninguém pra socorro, ninguém pra esporro.
Deixa pra lá, isso parece parêntese de literatura gótica, ou de poesia de T.S. Elliot, mas não é. Está mais pra Poe, uma poética de devaneio ou Carson McCullers, que aparece-me, na minha imaginação, como uma ninfeta desenhada por uma magnitude obscura e serena. Como essa ninfeta me deu e ainda dá prazer, e compartilho com ela um êxtase literário que resvala na sensibilidade sexual.
A primeira vez que li algo sobre ela, McCullers, se não estiver enganado, foi numa crítica ou ensaio do escritor americano Graham Greene, onde ele a citava e a comparava com outros grandes da literatura americana, como Faulkner e D.H. Lawrence... Aí, você já sabe, né? Se já leu alguma coisa desses dois aí, ou do próprio Greene, então, a curiosidade naturalmente aperta. Eu, comigo mesmo, dizia, "caramba, tenho que ler para ver como é que é, deve ser bacana."
A identificação e atração pela prosa sulista de McCullers foi instantânea. O primeiro livro que li dela foi o A Balada do Café Triste, em português (edição de Portugal), e hoje tenho quase todos os livros dela, em sua lingua original, o inglês. No Brasil ela é ainda pouco conhecida, infelizmente, pois, até onde sei, nas duas últimas décadas (meu raio temporal de atuação de pesquisa e memória) houve apenas duas traduções de obras dela no Brasil, edições que, inclusive, já estão esgotadas há muito, os livros são A Sócia do Casamento (The Member of the Wedding) pela Nobel e o próprio A Balada do Café Triste (The Ballad of Sad Cafe) pela Globo.
Há traduções de praticamente todas as obras dela em português de Portugal (lê-se importadas deste país), mas estas já são mais difíceis de se conseguir nas livrarias brasileiras, mas, para quem lê inglês, mesmo que razoavelmente, esta é uma ótima oportunidade de praticar essa língua e desenvolver o hábito e prazer de ler obras no original, pois, a prosa de McCullers é saborosíssima, requintada e, ao mesmo tempo que rica, acessível, mas, é preciso fazer ressalvas, pois, uma leitura deste tipo pode ser um tiro pela culatra. Mas, todo o risco é válido para conhecer e provar deste "êxtase".
Suas novelas, contos e romances já se tornaram peças de teatro e roteiro de filmes, o destaque dentre estes é o filme Pecado de Todos Nós (The Reflections In a Golden Eye - 1967), de John Huston, com Marlon Brando e Elizabeth Taylor, o elenco em si já dispensaria minha sugestão, sem contar com as presenças de Brian Keith e Julian Harris, vale a pena assisti-lo, pois o roteiro é baseado no livro homônimo de McCullers. Bom, o filme é de John Huston, então...
O livro The Reflections In a Golden Eye (1941) foi lançado logo depois da sensação The Heart Is a Lonely Hunter (1940), quando McCullers, só com 23 anos, destronou o coração de muita gente para torná-lo então num solitário caçador.
Carson McCullers retoma, de alguma forma, o inebriante universo de Dostoyevsky, quando alude a tragédia em cada suspiro de seus personagens. Miss Amélia, Spiros Antonapoulos & John Singer (dois surdos-mudos) e Franky são as sínteses da fábula de McCullers. Funcionam como válvula de escape de uma vida conturbada e difícil da prodigiosa Carson.
McCullers estudou nas escolas de escritores nas universidades de Columbia e Nova York, em 1937 casou-se com Reeves McCullers, de quem herdou o sobrenome. Três anos depois, quando o casal já residia na Carolina do Norte, separam-se. Nesta época, menos reclusa, aproximou-se de intelectuais e constituiu com estes boas amizades, tal como a com o dramaturgo e escritor Tennessee Williams. Bissexual, não teve felicidade nos relacionamentos com as mulheres até conhecer a escritora suíça Annemarie Clarac-Schwarzenbach (um "anjo devastado", diria Thomas Mann) - que já havia encantado certa vez Anaïs Nin. McCullers dedicou Reflections... à Annemarie, de uma vida também trágica, que morreu jovem, aos 34, depois de uma queda de bicicleta que lhe causou um traumatismo e uma hemorragia.
Aos 50, em 1967, Carson McCullers repousou para esta vida quando já havia sido eternizada como uma das maiores da literatura do século XX. A tragédia maior da vida desta escritora foi, como a de muitos, garimpar felicidade e paz em terrenos não muito propícios , rodeada de pessoas não preparadas para saciar suas necessidades.
Espero, sinceramente, que McCullers seja ainda muito revista, pois, a sua prosa carrega uma bipolaridade extenuante, e de um desequilíbrio final que extravaza nas paisagens e nos personagens que criou. Ler e descobrir os meandros de suas histórias é jogar malabares e tentar segurá-los a cada fim de página, com a sensação de que este é o príncipio de se ler Carson McCullers, comprometer-se com o equilíbrio à leitura de histórias tão duais, tão deformadas.
Ela, hoje, reside comigo num lugar especial na minha estantezinha...