Sofisticado e popular, Renato Russo canta sob a luz das cores de Frida Khalo, Almodóvar, e entoa desvarios que um livro de Henry James não narra; sob a prenda do amor melodias e notas que, como as de Pixinguinha, carinhosamente, afagam.
Com alguns dias de atraso, registro as minhas considerações sobre o novo filme de Fatih Akin - Soul Kitchen - que estreou na última sexta-feira.
Digo "alguns dias de atraso" porque a impressão deixada pelo filme me deu vontade de escrever sobre ele logo que saí da sala. Me espantou um pouco, numa sexta-feira, dia de estreia, o Unibanco Arteplex Frei Caneca estar "vaziinho", com pouquinhas pessoas por lá, para assistir um filme que levou o prêmio do júri do Festival de Veneza de 2009, e foi um dos mais comentados e também considerado como um dos mais queridos da 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, quando então recebeu ótimas avaliações da crítica especializada e do público.
Primeiro, o filme tem o motivo da gastronomia de fundo, e Fatih Akin faz questão de trabalhar esse assunto de um modo não usual, com uma despretensão que o faz, de fato, não ser um filme sobre comida e, por isso, pela forma despojada com que trabalha o tema, desvia-o dos clichês e dos estereótipos em que filmes desta temática costumam derrapar e, algumas vezes, nos enjoar. Há ótimos filmes que têm a comida como motivo principal ou coadjuvante, dentre eles eu me recordo e destaco O Anjo Exterminador, A Festa de Babette, Estômago, Ratatouille, Sideways,Os Cinco Sentidos, Marvada Carne, e por aí vai...
Soul Kitchen não lembra nenhum deles, ou melhor: lembra todos, mas só no que há de realmente bom nestes filmes. Isso, todos. Um filme, seja ele bom ou ruim, ao se entrever na temática que apetece aos nossos estômagos, estereótipos e modelos costumam povoar o gênero, tais como paixões alucinadas por meio do garfo, casais românticos embriagados, viagens gastronômicas, cozinhas afrodisíacas, road movies pelas estradas dos bandejões etc.; mas a virtude de Soul Kitchen está na ausência desses, digamos, "estratagemas", porque Akin, diretor prestigiado e conhecido pelos seus excelentes dramas, também premiados (Contra a Parede - Urso de Ouro no Festival de Berlim, e Do Outro Lado - Melhor Roteiro no Festival de Cannes), não segue nada disso, melhor, nos faz rir e encará-lo sem seriedade, por isso qualquer apresentação que eu venha fazer não fará jus ao filme, porque ele é povoado por improbabilidades partindo-se de uma ideia simples e sem alardes.
Portanto, o filme é uma daquelas boas criações feitas para relaxar e descontrair com um universo de quiprocós sem fim, ou quase sem fim. Os quiprocós são a razão de ser de Soul Kitchen. E faço questão de não me ater a detalhes do enredo para que o interessado em assistir ao filme nos cinemas possa ter a espontaneidade de receber as situações vividas pelo protagonista Zinos (vivido por Adam Boudouskos, que com Akin também assina o roteiro), dono de um restaurante em Hamburgo, Alemanha, da forma mais natural possível. O restaurante, de início, é quase um botecão onde, de início, o grande prato da casa é Hambúrguer com Fritas. Que diferente, e original, não? Bem, diferente fica a coisa quando o irmão de Zinos, vivido pelo excelente Moritz Bleibtreu, sai da cadeia em regime condicional.
Além do clima relax e de momentos recheados de boas estupidezes, os trunfos do filme são outros dois, que digo ser fundamentais: o elenco e a trilha sonora. Além de Bleibtreu, - um dos melhores atores alemães da atualidade - e Boudouskos - que para mim foi uma grata surpresa - está no elenco Birol Ünel, (excelente!) e Demir Gökgöl (cômico) - ambos estrelaram Contra a Parede - e outros que compõem a salada greco-turco-alemã que é o filme.
A música é o que amarra todas essas coisas, dando um tempero a toda a mistura. A seleção das canções é ótima e dispensa comentários, pois agrega música grega (juro que a rima não foi proposital) a muito bons embalos de soul e funk (é prudente lembrar que o funk aqui não é o carioca, certo?, mas o bom e autêntico som propagado por James Brown). Para quem já assistiu algum filme do diretor Fatih Akin, sabe que a trilha sonora é algo com que ele trabalha com muita acuidade, porque, de algum modo, a trilha sonora, pela intensidade e presença em seus filmes, é um dos principais personagens e fatores para ditar a força dos temas e dos personagens; e ainda funciona quase como um narrador da história, com uma carga de emoção que só é possível corresponder por meio da música.
Com tudo isso, pude perceber, sob o ponto de vista do diretor, que Soul Kitchen não é só um passo diferente de um diretor conhecido pelos seus dramas, mas também funciona como um "muito obrigado!" de Fatih Akin à sua cidade natal, Hamburgo. Durante o filme, pode-se verificar que, vez ou outra, o diretor mostra lugares que são os símbolos da cidade alemã que acolheu os pais vindos da Turquia, onde Akin passou a infância e aprendeu os ensinamentos da vida, tendo que enfrentar problemas que hoje são seus maiores legados - as identidades turca e alemã.
Fatih Akin é alemão de nascimento; e turco de coração, e não à toa, que o restaurante do protagonista, que nomea o filme, tem soul (alma) no nome. Por meio dele, do restaurante de Zinos, Akin quer nos mostrar que todos nós somos providos de uma essência, e essa essência reside em nossas paixões ou em nossas vocações, como será bem percebido no desenvolvimento do filme: a cozinha, como todas as outras coisas, precisa ter uma "alma", uma essência para funcionar.
A estrofe abaixo é de uma canção dos Doors, homônima ao filme (ou será o filme homônimo à música?):
Let me sleep all night In your soul kitchen, Warm my mind Near your gentle stove. Turn me out and I'll wander, baby, Stumblin' in the neon groves.
Em tradução livre, é:
Deixe-me dormir a noite inteira Na cozinha de sua alma, Aquecer minha mente. Em seu doce fogão. Ponha-me pra fora e ficarei vagando, baby, Cambaleando pelos bosques de neon.
Esses versos talvez expliquem alguma coisa do que foi dito, ou nada. As durezas, dificuldades e comicidades do filme podem ser resumidas no ato em que a agulha toca os sulcos do vinil e dá som à comida, à arte gourmet; comida é o combustível do corpo, tal como o coração dá energia a alma.
Soul Kitchen não tem a pretensão de explicar algo que tantos já tentaram - artistas, psicólogos etc. -, mas não conseguiram ainda uma definição aproximada do que é "alma". E é justamente por não pretender que o filmeé bom. E vale esperar até o fim dos créditos.
O ano não começou. A sintonia capturada pelas antenas de minha percepção diz que o ano-novo é muito velho, passado, tal qual um senhor já de idade avançada, e que mal apara a barba que alcança o peito. Esse velho senhor tem algo a me ensinar? Esse jovem já velho pode me dizer novas, e falar sobre livros velhos e filmes antigos e histórias caducas, esperados também por uma plateia sedenta por novidades? Mas como tudo isso pode acontecer se as novidades calham de ser as velhas coisas conhecidas, as mesmas que passaram em algum momento por mim, e não as percebi - estava então distraído - que eram coisas novas que se tornariam velhas, mas com um jeito velho demais para serem coisas novas? "O que esperar das coisas novas já envelhecidas e das velhas ainda novas?", pergunto, quase como um sussurro, ao senhor-quase-jovem. Esse senhor, que não é bem um senhor, mas tem cara de senhor, embora seja ainda um jovem de idade avançada, dá um sorrisinho sorrateiro, coça o queixo enroscando os dedos nos fios da barba espessa e suspira, "Bem, menino, espere tudo, inclusive o que não é esperado", e silencia por uns instantes, e imagino que sua fala, quase gutural, termina ali, quando é chegada a hora de ele seguir um novo rumo, só para não ter que responder questões enfadonhas como a minha, principalmente para um jovem-senhor que é um senhor-jovem, mas ele prossegue com aquela voz cavernosa, "Mas tudo com uma dose de paixão; assim, aí, nenhuma espera, por mais longa que possa ser, será em vão." Penso um pouco. Tento entender a mensagem daquele menino com cara de velho. "Esperar o não esperado"? Como assim? Confesso que fiquei intrigado, aborrecido, pois eu esperava do senhor-menino alguma resposta que pudesse me ajudar a desemaranhar as linhas do meu pensamento, que anda muito confuso com o passar do tempo, com o passar da minha juventude que vai envelhecendo enquanto minha velhice rejuvenesce; mas o senhor-jovem me deixou sem entender patavinas, fiquei mais lelé.
"O tempo é senhor", é o que ouço. "O tempo segue", é o que sinto. Nada li, nada vi, apenas apreendi pelo espírito, por tudo que aquele senhorzinho-menino me ensinou. E continua. "Ele é voraz." O tempo é o tempo, e é a imensidão que a vida acolhe, sem indagações. A partir disso, posso entender tudo, ainda que não venha a aprender nada.
Sigur Rós - Hoppípolla
Acesse o link a seguir, para assistir ao vídeo em uma melhor resolução:
Estou no solo onde o esporte bretão se desenvolveu como em nenhum outro. As minhas cores são três - vermelho, preto e branco. No entanto, não é de Friedenreich, Leônidas (O Diamante Negro), Dario Pereira de que venho falar. Nenhum daqui das cercanias paulistas. Mas lá da Gávea, em terras fluminenses. De um Galinho de Quintino que se tornou o maior ídolo da apaixonada torcida do Flamengo. Quem gosta de cinema e futebol se embebeda assistindo ao Canal 100, onde um rapaz franzino desfilou um modo de jogo ímpar na futebolização do Brasil, na futebolização de todos os futebóis. Uma cornucópia que enchiam olhos, bolas, gramados e estádios. Ângulos até então ainda não explorados pelas transmissões comuns de televisão juntavam algo como um "balé futebolístico" apresentado nas suas nuances, detalhes aliados a uma narração dramática, romântica. Assim era o futebol que eu não vi e de que sei apenas através dos documentos midiáticos, arquivos e as imagens antes quase inacessíveis que a web nos regala. E o "Galinho" tem agora uma estátua no Maraca, um voleio reproduzindo as lembranças de suas peripécias no gramados.
E Jorge e Zico, o que dá? Jorge, a poética do canal 100 e Zico canalizam o enredo de uma herança de uma melancolia herdada dos lusitanos, nostalgia que nos dirá que o passado sempre será melhor que o futuro. E vemos "o jogo". Vencemos "o jogo"?
Às imagens não há expiação; ao jogo ainda menos, e o que não transcende perece no mero documental. Os milhares de indivíduos aplaudem: não se rendem, ainda que seja a rede de sua agremiação a estufada.