quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Mulheres do Iêmen e Uma Dose Extra de Chantilly

"It rains like manchester", foi o que disse Liam Gallagher naquela noite de 20 de março de 2006, no show do Oasis aqui em São Paulo, quando eu, batizado pela chuva, já mal me movia com os meus jeans, calça e jaqueta, encharcados, pesavam quilos, e eu sentia bem o efeito do peso da água acumulada, curvava-me então capenga, pelo peso e pelo cansaço, do show e da água que ainda estava nas fibras do algodão da calça e da jaqueta. Era já início de dia e fim de noite quando terminou o show. Um aguaceiro só: exaustão inesquecível!
Hoje não foi muito diferente daquele 20 de março de 2006 (na verdade ontem, este texto começou a ser redigido às 0h06min de 25 de outubro de 2007, mas a referência é do 24). Mas, diferentemente daquele 20 de março, neste 24 de outubro eu não fui a show nenhum, mas o aguaceiro atravessou todo o dia e bem que poderia ter sido um belo e verdadeiro coadjuvante na atmosfera que se comprimia para o que se programava. Se os nossos prognósticos otimistas fossem ótimos a ponto de serem suficientes para que algo desse certo, hoje eu teria assistido a última sessão de Control, a cinebiografia de Ian Curtis, na Mostra de Cinema de SP, mas não deu. Chuva, distância, ingressos (em tese, a falta destes), foram determinantes para que não conseguisse ver a película sobre a "estória" de Ian, vocalista responsável pelo Joy Division, banda também de Manchester. O céu cinza, chuvoso, criava a atmosfera ideal para que se assistisse um filme desse personagem, dessa banda chuvosa, cinzenta, a definição poética para esta atmosfera seria "um dia desespero choroso de céu plumbeo".
18h45. O horário de desembarque do 11º ao térreo do Conjunto. Cavuquei então na bolsa-carteiro o guia da Mostra já judiadinho. Sessão: 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias - ESGOTADA. Pesquisar? É. Pesquisar! Sem me demorar, depois, fui lá, comprei ingresso para a sessão das 19h10: Programa Duplo 3, dos médias metragens: Cada Passo Que Você Dá, de Nino Leitner, e Amor e Letras, de Sylvie Ballyot.
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Dois documentários, o primeiro trata sobre a questão das CCTV (câmeras de circuito fechado), a proliferação destas nas esquinas da Grã-Bretanha, da bigbroderização do universo britânico, de todo o mundo que as utiliza justificando-se pela segurança que, em teoria, traz para as instituições, cidades, pessoas, empresas que lançam mão de seus serviços para tudo vigiar e tudo ver. Deu um pouco de sono, mas valeu. O diretor, Nino Leitner, inclusive, estava presente na sessão e foi brevemente apresentado no início da projeção e brevemente papeou também. O filme, nos primeiros 5 minutos travou, literalmente. Por três vezes os técnicos se dirigiram a cabininha mágica pra consertar o filme. Cabininha mágica que lança um raio na tela branca que vira imagem e som e faz muita gente rir ou chorar, faz gente ser feliz ou faz gente motivar-se um pouco para fazer alguma coisa ou qualquer coisa. Ofício de imaginação ou de se embarcar nela.

Emendada à projeção sobre as CCTV, veio o Amor e Letras, média metragem de Sylvie, como dito. Também documental, Sylvie foi ao Iêmen para filmar uma mulher, uma egípcia naturalizada francesa, a qual também serviu como intérprete da diretora naquele país. Mas, para quem não sabe, o Iêmen é um dos países islâmicos no qual as mulheres não podem mostrar o corpo e nem o rosto, devem conviver socialmente com uma vestimenta negra iemenita, de tradição shiita, com diferença à Burca afegã, já que deixa à mostra apenas os olhos.

As mulheres estrangeiras no Iêmen são consideradas pertencentes ao 3° sexo, ou seja, não são obrigadas a vestir tais vestimentas, mas, são indispensáveis um xale para cobrir o cabelo e, claro, vestes discretas (ou pensa que poderá andar pelas esquinas do Iêmen de shortinho, já que lá faz muito calor?).

Mas, Sylvie foi abordada por representantes islâmicos e do governo local, os quais a proibiam de prosseguir com tais gravações, já que a egípcia era islâmica. Todo o material filmado até então foi retido por estes indivíduos. Pertimitiram que as filmagens prosseguissem a partir de então, desde que não filmasse o rosto da mulher ou a filmasse de corpo inteiro. Ah, revoltada, a diretora passou a se filmar, estática, em meio a multidão, já que o objeto de filmagem era proibido e toda a sua construção criativa se via impedida pelos costumes ditatoriais locais. Em vários locais, Sylvie, tal como nas ruas e nos mercados públicos mostra-se estática em frente à câmera, deixando-se filmar, sem ação, apenas ali, parada.

A proximidade com a mulher, pela intérprete, o foco inicial de seu trabalho, com a amizade crescente, experiências pessoais trocadas, tudo isso transforma-se numa paixão incandescente entre as duas, e Sylvie passa a focaliza-lo nas filmagens. Essa paixão mútua, entre Sylvie e a mulher (o nome dela não é citado no filme) era um outro desafio na continuação das filmagens, já que num país onde uma mulher não pode mostrar o rosto, vá lá mulheres se relacionarem-se com mulheres. Seguem-se os relatos das noites de amor entre as duas e a paixão desenvolvida, por poesia, citações rasgadas.

A diretora intercala, então, entrevistas com jovens locais com as suas auto-filmagens nos lugares públicos, com as imagens púdicas da mulher por quem se apaixonou. Nas entrevistas, Sylvie questiona os jovens sobre casamento, amizade e, principalmente, homossexualidade.

Bom, a diretora resumiu a sua rotina, censurada em parte pela Charia (lei islâmica) que a impedia de veicular o retrato de seu amor. Era lugar proibido para sentimento proibido.
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Findada a sessão, percebi que a chuva rasgava com mais força o céu, que eu imaginara quando ouvira só o barulho dela. Saí do Conjunto Nacional e vi os pinguinhos de água excessivos e refrescantes para aquela noite, bem esperada por mim aquela chuva: dias quentes. Foi presença certa por dois dias, não começara ali, naquele momento, naquela noite.

Ainda procurava a possibilidade de uma nova sessão, mas já esgotadas mesmo nos cinemas ao redor. Ainda tomei da chuva pra ver mesmo se tinha como ter uma nova sessão interessante. Não. Resultou em lamento, pra combinar com a chuva que já esfriava bem. Já me encontrava subindo a rua Augusta, entrei na galeria, dei de cara com a Starbucks ali, porque não esquentar um pouco com um chocolate ou café, agora que não tinha cinema? Era a alternativa. Fui-me até o balcão, procurei no cardápio, do quadro de luz pregado à parede, as opções possíveis. Ah, por que então não misturar o útil café ao agradável chocolate, mas sem o melado costumeiro de um capuccino?

Solicitei um Cáfé Mocha (lê-se Móca) - um expresso com chocolate, leite vaporizado e Chantilly... e então? Sabe-se que, lá fora, essa rede de cafeterias tem por hábito personalizar o atendimento chamando o cliente pelo próprio nome, inclusive, dispensando uma atenção fora do comum aos seus clientes. Pois bem, já estava pago o café e então esperava pela bebida no balcãozinho ao lado do caixa, enquanto os baristas (certificados e treinados rigorosamente pela cafeteria) preparavam o meu Mocha. Pronto! Chega o Mocha na mãozinha da barista e eu já preparado para "tomá-lo" sou surpreendido pelo chamado da menina, "Henrique, o seu Café Mocha já está pronto". Fiquei quieto. Mas, oras, cadê o Henrique? A menina barista repetiu, "Henrique, pode vir retirar o seu Café Mocha, já está pronto". Continuei quieto. Enfim, no terceiro chamado, questionei a barista, muito atenciosa, "Bem, eu pedi um Mocha, eu acho que esse que este que está na sua mão é o meu, não?" A menina, "Qual é o seu nome?" Eu, "Marcelo", a barista, "Escreveram que este Mocha era do Henrique". Eu, "Sim, mas o Henrique era quem estava na minha frente, já retirou o pedido e saiu". A barista, "Oh, desculpe, Marcelo, pelo equívoco." Pelo engano cometido, você tem direito a uma dose extra de Chantilly, tudo bem? Eu, "...ah, sim, sim, tudo bem." Mas, a menina barista viu que o Mocha, neste interim, já não estava em sua temperatura dantes, então, disse, "Marcelo, vou preparar um novo Café Mocha para você, pois, pelos testes, este já não se encontra na temperatural ideal, e ainda adicionarei a ele a dose extra de Chantilly".

Peguei, enfim, o meu Mocha, e gozei com o calor e o sabor dele, na chuva, até que chegasse à Consolação, na caminhada. Mas a Consolação era, pelos filmes não assistidos, de fato, a dose extra de Chantilly.

Todos esses fatos, são mais uns desses que acontecem, bem ordinários, fatos que, num instante, num momento específico, a sós ou acompanhados, nos surpreendem e nos alimentam de energia; podem ser chuviscos dosados enfaiscantes, ou apocalipses encrispados de águas vindas do céu, como naquele março de 2006, pode ser num encontro inesperado, casual; ou um chocolate quente energizante que partilha o gosto do cacau com o do café, com o leite, esquentando da língua às nossas cavidades internas, e todos acompanhados de uma formosa, alva e fofa dose extra de Chantilly.
Assim, tudo será incomum, mesmo o ordinário dos ordinários, o comum dos comuns...

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