quarta-feira, 24 de março de 2010

Quiprocós para relaxar

Divulgação

A "Santa Ceia"


Com alguns dias de atraso, registro as minhas considerações sobre o novo filme de Fatih Akin - Soul Kitchen - que estreou na última sexta-feira.

Digo "alguns dias de atraso" porque a impressão deixada pelo filme me deu vontade de escrever sobre ele logo que saí da sala. Me espantou um pouco, numa sexta-feira, dia de estreia, o Unibanco Arteplex Frei Caneca estar "vaziinho", com pouquinhas pessoas por lá, para assistir um filme que levou o prêmio do júri do Festival de Veneza de 2009, e foi um dos mais comentados e também considerado como um dos mais queridos da 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, quando então recebeu ótimas avaliações da crítica especializada e do público.

Primeiro, o filme tem o motivo da gastronomia de fundo, e Fatih Akin faz questão de trabalhar esse assunto de um modo não usual, com uma despretensão que o faz, de fato, não ser um filme sobre comida e, por isso, pela forma despojada com que trabalha o tema, desvia-o dos clichês e dos estereótipos em que filmes desta temática costumam derrapar e, algumas vezes, nos enjoar. Há ótimos filmes que têm a comida como motivo principal ou coadjuvante, dentre eles eu me recordo e destaco O Anjo Exterminador, A Festa de Babette, Estômago, Ratatouille, Sideways, Os Cinco Sentidos, Marvada Carne, e por aí vai...

Soul Kitchen não lembra nenhum deles, ou melhor: lembra todos, mas só no que há de realmente bom nestes filmes. Isso, todos. Um filme, seja ele bom ou ruim, ao se entrever na temática que apetece aos nossos estômagos, estereótipos e modelos costumam povoar o gênero, tais como paixões alucinadas por meio do garfo, casais românticos embriagados, viagens gastronômicas, cozinhas afrodisíacas, road movies pelas estradas dos bandejões etc.; mas a virtude de Soul Kitchen está na ausência desses, digamos, "estratagemas", porque Akin, diretor prestigiado e conhecido pelos seus excelentes dramas, também premiados (Contra a Parede - Urso de Ouro no Festival de Berlim, e Do Outro Lado - Melhor Roteiro no Festival de Cannes), não segue nada disso, melhor, nos faz rir e encará-lo sem seriedade, por isso qualquer apresentação que eu venha fazer não fará jus ao filme, porque ele é povoado por improbabilidades partindo-se de uma ideia simples e sem alardes.

Portanto, o filme é uma daquelas boas criações feitas para relaxar e descontrair com um universo de quiprocós sem fim, ou quase sem fim. Os quiprocós são a razão de ser de Soul Kitchen. E faço questão de não me ater a detalhes do enredo para que o interessado em assistir ao filme nos cinemas possa ter a espontaneidade de receber as situações vividas pelo protagonista Zinos (vivido por Adam Boudouskos, que com Akin também assina o roteiro), dono de um restaurante em Hamburgo, Alemanha, da forma mais natural possível. O restaurante, de início, é quase um botecão onde, de início, o grande prato da casa é Hambúrguer com Fritas. Que diferente, e original, não? Bem, diferente fica a coisa quando o irmão de Zinos, vivido pelo excelente Moritz Bleibtreu, sai da cadeia em regime condicional.

Além do clima relax e de momentos recheados de boas estupidezes, os trunfos do filme são outros dois, que digo ser fundamentais: o elenco e a trilha sonora. Além de Bleibtreu, - um dos melhores atores alemães da atualidade - e Boudouskos - que para mim foi uma grata surpresa - está no elenco Birol Ünel, (excelente!) e Demir Gökgöl (cômico) - ambos estrelaram Contra a Parede - e outros que compõem a salada greco-turco-alemã que é o filme.

A música é o que amarra todas essas coisas, dando um tempero a toda a mistura. A seleção das canções é ótima e dispensa comentários, pois agrega música grega (juro que a rima não foi proposital) a muito bons embalos de soul e funk (é prudente lembrar que o funk aqui não é o carioca, certo?, mas o bom e autêntico som propagado por James Brown). Para quem já assistiu algum filme do diretor Fatih Akin, sabe que a trilha sonora é algo com que ele trabalha com muita acuidade, porque, de algum modo, a trilha sonora, pela intensidade e presença em seus filmes, é um dos principais personagens e fatores para ditar a força dos temas e dos personagens; e ainda funciona quase como um narrador da história, com uma carga de emoção que só é possível corresponder por meio da música.

Com tudo isso, pude perceber, sob o ponto de vista do diretor, que Soul Kitchen não é só um passo diferente de um diretor conhecido pelos seus dramas, mas também funciona como um "muito obrigado!" de Fatih Akin à sua cidade natal, Hamburgo. Durante o filme, pode-se verificar que, vez ou outra, o diretor mostra lugares que são os símbolos da cidade alemã que acolheu os pais vindos da Turquia, onde Akin passou a infância e aprendeu os ensinamentos da vida, tendo que enfrentar problemas que hoje são seus maiores legados - as identidades turca e alemã.

Fatih Akin é alemão de nascimento; e turco de coração, e não à toa, que o restaurante do protagonista, que nomea o filme, tem soul (alma) no nome. Por meio dele, do restaurante de Zinos, Akin quer nos mostrar que todos nós somos providos de uma essência, e essa essência reside em nossas paixões ou em nossas vocações, como será bem percebido no desenvolvimento do filme: a cozinha, como todas as outras coisas, precisa ter uma "alma", uma essência para funcionar.

A estrofe abaixo é de uma canção dos Doors, homônima ao filme (ou será o filme homônimo à música?):

Let me sleep all night
In your soul kitchen,
Warm my mind
Near your gentle stove.

Turn me out and I'll wander, baby,

Stumblin' in the neon groves.


Em tradução livre, é:

Deixe-me dormir a noite inteira
Na cozinha de sua alma,
Aquecer minha mente.
Em seu doce fogão.
Ponha-me pra fora e ficarei vagando, baby,
Cambaleando pelos bosques de neon.


Esses versos talvez expliquem alguma coisa do que foi dito, ou nada. As durezas, dificuldades e comicidades do filme podem ser resumidas no ato em que a agulha toca os sulcos do vinil e dá som à comida, à arte gourmet; comida é o combustível do corpo, tal como o coração dá energia a alma.

Soul Kitchen não tem a pretensão de explicar algo que tantos já tentaram - artistas, psicólogos etc. -, mas não conseguiram ainda uma definição aproximada do que é "alma". E é justamente por não pretender que o filme é bom. E vale esperar até o fim dos créditos.

Um comentário:

Imira disse...

"Yeah, mann"!

O filme é uma delícia!