Carla sempre se aborrecia com a enrolação de Rui para o jantar. Jantar posto, e era uma nova novela Rui largar a TV, o telejornal, queria se inteirar de tudo. Usava como desculpa o trabalho que lhe ocupava o tempo. Nisso, Carla, cansava-se de alertar Rui. Os chamados de Carla ecoavam no corredor, que ligava a cozinha à sala, sobre a comida que esfriava na mesa.
- Rui, deixa isso. Pôxa, não dá pra ver isso depois? Tem internet. Depois você vai lá e vê tudo que esses caras estão falando aí?
- Tá, tá...
- Ei, vai esfriar...
- Tá bom.
- Tá bom, nada. Vem cá!
- Já vou.
- Ah, tá. Vem e depois pede pra esquentar tudo no micro-ondas. Por acaso, tenho cara de palhaça?
- Não, querida, não tem. Mas que você é engraçada, isso é...
- O quêeee? Desaforento! Eu me esgoleando e você ainda fazendo piada com a minha cara.
- Não querida, eu só disse que você é engraçada.
- Ah, e você quer que eu encare isso como um beijinho no rosto. Me poupa, Rui. Todo dia é a mesma coisa.
- Tá, você tem razão. Todo dia é a mesma coisa. Então vamos fazer diferente.
- Ã...
- Sim. É só você, a partir de amanhã, não me chamar mais durante o jornal, certo?
- Ha ha!
- Adoro quando ri assim.
- Pára, Rui. Você sabe bem que isso não é um riso. Que merda! Caramba, eu fico pensando o dia inteiro no que fazer para o jantar, com carinho, tento inovar, fazer algo diferente, por você, por nós, tentar fazer com que a nossa vida não seja contaminada por esta coisa que chamam de rotina. Tento fazer um agrado, e você nem aí.
- Não é bem assim.
- Como não? Tem dia que você ronca aí no sofá. Emenda jornal no filme e o filme em outro programa, aí vai... Esquece da comida, esquece da cama, esquece de mim...
- Mas...
- Nem 'mas' nem 'menos', Rui! Estou cansada.
- Carla, precisa se revoltar assim? Olha, você está certa. Eu às vezes piso na bola mesmo. Às vezes você me liga lá do seu serviço só pra perguntar o que eu gostaria de comer, daí peço pra você fazer e, dependendo do dia, acabo nem jantando, porque depois bate uma preguiça, um cansaço aqui no sofá, maior do que a fome...
- Que bonito! Ele reconhece. É tão bonitinho...
- Tá, Carlinha, não precisa ironizar.
- Tá, meu poeta, me responde agora, na prática o que muda? Discursinho de que sabe que eu me empenho e tal, mas você faz alguma coisa pra mudar?
- Faço, claro que faço. Todos os dias reconheço pra você que não faço nada pra mudar. Já é alguma coisa...
- Deixa de graça.
- He! He! Tá bom. Vou parar de te encher, meu amor. Desculpa por hoje, e por todos esses dias. Eu prometo não aborrecê-la mais, juro.
- Rui, até quando?
- Até quando o quê, querida?
- Até quando você vai ficar fazendo essas juras ridículas de 'eu faço', 'eu reconheço', 'vamos mudar' e blá blá blá blá blá. Chega, né, Rui!?
- Calma, Carlinha! Eu estou sendo sincero contigo.
Um silêncio reinou por extensos trinta segundos, até que Rui o quebrou com uma pergunta.
- Você sabe o que eu queria agora?
- Não.
- Eu queria te dar um abraço, um beijo. Mas você tem que deixar eu chegar perto de você. Eu fico com medo quando você fica com essa cara...
O sorriso de Carla vibrou pela casa pela primeira vez naquela noite.
- Ah, seu bobo, seu bobo. E eu sou mais boba ainda por gostar de você, amar alguém como você. É só você falar assim para eu me derreter. Ai, às vezes como eu queria ficar com raiva de você, de verdade, pra você ver o que é bom. Mas eu não consigo, não consigo. Você me desmonta com essa cara de cachorro pidão.
- Eu não sou um cachorro pidão. Sou um gatinho pidão.
- Ah, ainda se acha. Posso com uma coisa dessa?
Quase infinitamente num minuto se abraçaram e deram-se um longo beijo. E outros trinta segundos de silêncio se apoderaram da situação até que Carla começasse outra vez:
- Posso te pedir uma coisa?
- Sim, querida.
- É uma coisa pequenininha, juro...
- Tá, Carlinha.
- A janta, amor...
Caminharam, então, juntos, para a ceia mais importante: a ceia de todos os dias.
Como todo casal normal, Carla e Rui precisavam de um frescor de vida, que poderia vir de uma noite de amor, de uma discussão. De lampejos de alegria, ou de contendas de choro. Conheciam o poder do micro-ondas para salvaguardá-los, especialmente Rui, nas noites de jantares nos horários trocados. Sabiam da especialidade que é entenderem-se no razoável da fina pétala brumada, dos dias difíceis adocicados pelo perfume sensível, irrequieto, único do amor.
Haja gostar. Desentendiam-se e amavam e amavam-se.
- Rui, deixa isso. Pôxa, não dá pra ver isso depois? Tem internet. Depois você vai lá e vê tudo que esses caras estão falando aí?
- Tá, tá...
- Ei, vai esfriar...
- Tá bom.
- Tá bom, nada. Vem cá!
- Já vou.
- Ah, tá. Vem e depois pede pra esquentar tudo no micro-ondas. Por acaso, tenho cara de palhaça?
- Não, querida, não tem. Mas que você é engraçada, isso é...
- O quêeee? Desaforento! Eu me esgoleando e você ainda fazendo piada com a minha cara.
- Não querida, eu só disse que você é engraçada.
- Ah, e você quer que eu encare isso como um beijinho no rosto. Me poupa, Rui. Todo dia é a mesma coisa.
- Tá, você tem razão. Todo dia é a mesma coisa. Então vamos fazer diferente.
- Ã...
- Sim. É só você, a partir de amanhã, não me chamar mais durante o jornal, certo?
- Ha ha!
- Adoro quando ri assim.
- Pára, Rui. Você sabe bem que isso não é um riso. Que merda! Caramba, eu fico pensando o dia inteiro no que fazer para o jantar, com carinho, tento inovar, fazer algo diferente, por você, por nós, tentar fazer com que a nossa vida não seja contaminada por esta coisa que chamam de rotina. Tento fazer um agrado, e você nem aí.
- Não é bem assim.
- Como não? Tem dia que você ronca aí no sofá. Emenda jornal no filme e o filme em outro programa, aí vai... Esquece da comida, esquece da cama, esquece de mim...
- Mas...
- Nem 'mas' nem 'menos', Rui! Estou cansada.
- Carla, precisa se revoltar assim? Olha, você está certa. Eu às vezes piso na bola mesmo. Às vezes você me liga lá do seu serviço só pra perguntar o que eu gostaria de comer, daí peço pra você fazer e, dependendo do dia, acabo nem jantando, porque depois bate uma preguiça, um cansaço aqui no sofá, maior do que a fome...
- Que bonito! Ele reconhece. É tão bonitinho...
- Tá, Carlinha, não precisa ironizar.
- Tá, meu poeta, me responde agora, na prática o que muda? Discursinho de que sabe que eu me empenho e tal, mas você faz alguma coisa pra mudar?
- Faço, claro que faço. Todos os dias reconheço pra você que não faço nada pra mudar. Já é alguma coisa...
- Deixa de graça.
- He! He! Tá bom. Vou parar de te encher, meu amor. Desculpa por hoje, e por todos esses dias. Eu prometo não aborrecê-la mais, juro.
- Rui, até quando?
- Até quando o quê, querida?
- Até quando você vai ficar fazendo essas juras ridículas de 'eu faço', 'eu reconheço', 'vamos mudar' e blá blá blá blá blá. Chega, né, Rui!?
- Calma, Carlinha! Eu estou sendo sincero contigo.
Um silêncio reinou por extensos trinta segundos, até que Rui o quebrou com uma pergunta.
- Você sabe o que eu queria agora?
- Não.
- Eu queria te dar um abraço, um beijo. Mas você tem que deixar eu chegar perto de você. Eu fico com medo quando você fica com essa cara...
O sorriso de Carla vibrou pela casa pela primeira vez naquela noite.
- Ah, seu bobo, seu bobo. E eu sou mais boba ainda por gostar de você, amar alguém como você. É só você falar assim para eu me derreter. Ai, às vezes como eu queria ficar com raiva de você, de verdade, pra você ver o que é bom. Mas eu não consigo, não consigo. Você me desmonta com essa cara de cachorro pidão.
- Eu não sou um cachorro pidão. Sou um gatinho pidão.
- Ah, ainda se acha. Posso com uma coisa dessa?
Quase infinitamente num minuto se abraçaram e deram-se um longo beijo. E outros trinta segundos de silêncio se apoderaram da situação até que Carla começasse outra vez:
- Posso te pedir uma coisa?
- Sim, querida.
- É uma coisa pequenininha, juro...
- Tá, Carlinha.
- A janta, amor...
Caminharam, então, juntos, para a ceia mais importante: a ceia de todos os dias.
Como todo casal normal, Carla e Rui precisavam de um frescor de vida, que poderia vir de uma noite de amor, de uma discussão. De lampejos de alegria, ou de contendas de choro. Conheciam o poder do micro-ondas para salvaguardá-los, especialmente Rui, nas noites de jantares nos horários trocados. Sabiam da especialidade que é entenderem-se no razoável da fina pétala brumada, dos dias difíceis adocicados pelo perfume sensível, irrequieto, único do amor.
Haja gostar. Desentendiam-se e amavam e amavam-se.
Um comentário:
"Joga a chave, meu bem
Aqui fora tá ruim demais
Cheguei tarde, pertubei teu sono
Amanhã não perturbo mais..."
Adoniran Barbosa
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