quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A Calça Xadrez de Richard Gere



Ao assistir, nesta semana, Acossado (1959), de Jean-Luc Godard, algumas cenas que não são deste filme vêm à tona em meu pensamento. Lembranças de longe, ou de muito tempo, mas próximas porque conservam ainda certo frescor quando surgem, assim, quase que sem querer.

As cenas, às quais me refiro, ficaram um bom tempo confusas, naquelas lembranças da infância, das noites com os olhos pregados à TV. Confundi protagonistas, nome de filmes, músicas, interpretações. Numa época em que, para mim, nem era importante saber quem era o diretor deste ou daquele filme.

As imagens confusas, embaçadas por um certo tempo, tornam-se nítidas quando volto a ouvir aquela música da cena do chuveiro. Pela primeira vez, ver um homem e uma mulher nus, num filme, fazia parte do descobrimento, do mundo e de mim mesmo. Homem e mulher unidos, fazendo amor, era uma possibilidade apreendida dos filmes, primeiramente. Eu saberia muito depois o quão bom e importante é dar e receber isso o que chamam de carinho, de amor.

Suspicious Minds, por Elvis Presley, é a canção da cena do chuveiro. Para bom entendor meia-palavra basta? Os entendedores então já devem saber do filme a começar pelo título deste texto. A Força de um Amor (1983) é o filme. Remake americano de Acossado, filme seminal da Nouvelle Vague francesa.

O argumento do filme francês, de François Truffaut, é o mesmo para o filme americano (a história de um ladrão de carros que decide burlar todas as regras para viver com a mulher que ama), mas a versão americana é bem diferente do original francês. O filme conta a história de um ladrão de carros, que na fuga, em um de seus roubos, acaba por matar um policial. Com a complicação de sua situação busca ajuda junto à sua namorada. O ladrão embute a idéia de fugirem para o México. No elenco, Richard Gere e Valérie Kaprisky fazem as vezes de Jean-Paul Beomondo e Jean Seberg. As cidades de Marselha e Paris, do filme de Godard, aqui são substituídas por Las Vegas e Los Angeles.

Como visto, o enredo parece mesmo muito simples. Jesse Lujack (Gere), como um emblemático galanteador, lança mão das suas poderosas armas de conquista para convencer Monica Poiccard (Kaprisky) de que o melhor caminho é a estrada, vencerem sobre as rodas de um cadillac até alcançarem o sol do México.

Lembro-me que as cenas deste filme compuseram um quebra-cabeça que peça a peça foi montado, pelos anos da infância, puberdade até ser estabelecido posteriormente no mundo dos adultos.

As cenas de nudez, de sexo; o sentimento de devoção de um homem à uma mulher; os sonhos desenhados com um tino sentimento de inviabilidade de realização, mas, mesmo assim, acreditados; o plano de vida arriscado por um ideal que tange a inocência, com uma impureza leal característica dos filhos que descobrem que o mundo dos pais é o seu também.


O último grito, o último giro, a última dança... O abraço de despedida que promete volta; a confissão mentirosa de 'eu não amo você'; a mentira deflagrada: 'sua mentirosa'; a piscina azul com o som da água de Monica imersa; a imagem no tremeluz do maiô vermelho; Jesse, tal como um Tarzan, descendo até a piscina; Jesse adorando a vida e lendo, compulsoriamente, O Surfista Prateado; Jesse, um anti-herói, um marginalzinho que vê a vida como objeto de total desfrute. Isso, na minha infância, me causava certo fascínio, mesmo que não entendesse muito bem.

O banho de chuveiro ao som de Elvis; os arranques no cadillac. A redenção de Jesse por Monica, talvez a seu único combustível de fé em sumplantar as armadilhas que se enredavam para por fim a sua crença, abalar a sua carga de confiança no amor. A incidental de Philip Glass resume um pouco tudo isso.

De novo, agora, a última corrida, o último giro, a última dança. Jesse parecia acreditar, mais do que nunca, no grand finale; que nunca o separariam de Monica. Tudo isso, no último escape, do último giro... Numa das fugas, buscar abrigo num cinema.

Estas imagens se juntam quando me lembro um pouco do que me ocorria. Do filme e da melancolia e emoção que me acometiam ao assisti-lo num fim de noite, já muito tarde. Enquanto meus pais dormiam, eu, de alguma maneira, na sala, sonhava acordado. O mote era ver o mundo que eu ainda não via. Sem saber, que muita coisa viria depois; e muito depois poderia me lembrar da calça xadrez de Richard Gere, de sua aposta com a vida, daquele amor que não cria ser mundano; arriscar tudo.

O balanço, o beijo e o fim sem volta, de quem acreditou no impossível. As crianças acreditam no impossível. Acreditam porque não mensuram o tamanho das coisas estabelecidas, nem divisam bem o que faz parte do mundo imaginário e do mundo real.

Para mim, era mais do que possível ser um Jesse Lujack a correr pelas ruas, rasgar o peito, e dividir o chuveiro com alguém digno de meu amor, cantando Suspicious Minds.

Ainda não tive a minha calça xadrez, mas é uma questão de tempo. Aprendi que - ainda que se deslize nas tentativas - é preciso mesmo arriscar...

Penso, matuto e não desacredito.

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