O conto é mesmo muito pequeno. Cabe em uma página. Mas a quantidade de caracteres nada tem a ver com a força de um texto, exemplo muito bem estabelecido com este.
O Passeio Repentino encontra-se no primeiro volume publicado, Contemplação (Betrachtung), ainda em vida por seu autor - que já foi traduzido também por Consideração. Este volume contém historietas, contos breves.
Kafka nem sempre é kafkiano. O que quero dizer com isso? Bom, criou-se uma cultura nas rodas e debates literários de dizer que Kafka é naturalmente pessimista, com a realidade, com o universo, e por esta razão os distorce, com o objetivo de não empreender uma fuga deles, mas de provocar-nos em nossos íntimos, no mundo distorcido que há em cada um. A identificação ou repulsa é natural ao ler Kafka. A primeira, por observar a si próprio nos flagelos com palavras nada adornadas de seus personagens; a segunda, por realmente não aceitar que isso aconteça, e preferir o refúgio em algo que não seja tão "denunciador".
Quando digo que Kafka nem sempre é kafkiano, quero demonstrar que Kafka nem sempre é monstruoso tal como se desenha a suas novelas, no que condiz ao tratamento psicológico. Muitos duvidam, mas Kafka é muito esperançoso também, ainda que já tenha escrito: "Há esperanças, só não para nós." A figuração do absurdo faz-se necessária para a denúncia. Há menos horror do que o que se imagina, propriamente. O horror maior são mesmos estes dias, é o que transparece em o O Processo, texto cada vez mais atual quando questionamos a situação de justiça, e a nossa responsabilidade sobre ela, a nossa contribuição para que haja, ao menos, um sentimento de justiça em quaisquer setores sociais.
Enfim, não objetivo discorrer de forma aprofundada sobre isso, mas quero apenas mostrar que Kafka é um indivíduo de esperanças, principalmente ao compor o conto O Passeio Repentino, um texto que parece desproposital e sem conflitos; mostra-nos uma idéia simples para reverter uma situação, que fará, sem dúvida, aquele personagem, como o nosso dia, como os nossos empreendimentos, com certeza, bem melhores do que se configuravam, quando já decidíamos quebrar uma verdade, quase aceita.
Seguem os textos; o original em alemão e o traduzido para o português, de forma sempre exemplar, por Modesto Carone.
Der Plötzliche Spaziergang
Wenn man sich am Abend endgültig entschlossen zu haben scheint, zu Hause zu bleiben, den Hausrock angezogen hat, nach dem Nachtmahl beim beleuchteten Tische sitzt und jene Arbeit oder jenes Spiel vorgenommen hat, nach dessen Beendigung man gewohnheitsgemäß schlafen geht, wenn draußen ein unfreundliches Wetter ist, welches das Zuhausebleiben selbstverständlich macht, wenn man auch jetzt schon so lange bei Tisch stillgehalten hat, daß das Weggehen allgemeines Erstaunen hervorrufen müßte, wenn nun auch schon das Treppenhaus dunkel und das Haustor gesperrt ist, und wenn man nun trotz alledem in einem plötzlichen Unbehagen aufsteht, den Rock wechselt, sofort straßenmäßig angezogen erscheint, weggehen zu müssen erklärt, es nach kurzem Abschied auch tut, je nach der Schnelligkeit, mit der man die Wohnungstür zuschlägt, mehr oder weniger Ärger zu hinterlassen glaubt, wenn man sich auf der Gasse wiederfindet, mit Gliedern, die diese schon unerwartete Freiheit, die man ihnen verschafft hat, mit besonderer Beweglichkeit beantworten, wenn man durch diesen einen Entschluß alle Entschlußfähigkeit in sich gesammelt fühlt, wenn man mit größerer als der gewöhnlichen Bedeutung erkennt, daß man ja mehr Kraft als Bedürfnis hat, die schnellste Veränderung leicht zu bewirken und zu ertragen, und wenn man so die langen Gassen langläuft, - dann ist man für diesen Abend gänzlich aus seiner Familie ausgetreten, die ins Wesenlose abschwenkt, während man selbst, ganz fest, schwarz vor Umrissenheit, hinten die Schenkel schlagend, sich zu seiner wahren Gestalt erhebt.
Verstärkt wird alles noch, wenn man zu dieser späten Abendzeit einen Freund aufsucht, um nachzusehen, wie es ihm geht.
Franz Kafka
Tradução
O Passeio Repentino
Quando à noite parece ter-se tomado a decisão definitiva de permanecer em casa, vestiu-se o roupão, depois do jantar ficou-se sentado à mesa iluminada, às voltas com aquele trabalho ou jogo ao término do qual habitualmente se vai dormir, quando lá fora há um tempo inamistoso que torna natural permanecer em casa, quando já se passou tanto tempo quieto à mesa que ir embora teria de provocar espanto geral, quando até as escadas já estão escuras e a porta do prédio fechada, e quando apesar disso tudo, num mal-estar repentino, fica-se em pé, troca-se o roupão, surge-se imediatamente vestido para ir à rua, se esclarece que é preciso sair, faz-se isso depois de breve despedida, acreditando-se ter deixado maior ou menor irritação conforme a rapidez com que se bate a porta do apartamento, quando se está de novo na rua com membros que respondem com uma mobilidade especial a essa liberdade inesperada que lhes foi concedida, quando se sente, através dessa decisão, concentrada em si mesmo toda a capacidade de decidir, quando se reconhece com um senso maior que o comum que se tem mais energia do que necessidade de produzir e suportar a mais rápida das mudanças, e quando assim se vai às pressas pelas longas ruas - então por essa noite está-se totalmente desligado da família, que desvia seu rumo para o inessencial enquanto, firme de alto a baixo, os contornos com as linhas carregadas, dando tapas na parte traseira das coxas, ascende-se à sua verdadeira estatura.
Tudo fica mais reforçado quando, a essa hora tardia da noite, se procura um amigo para ver como ele vai.
(tradução de Modesto Carone, no livro A Contemplação / O Foguista, de Franz Kafka - ed. Cia. das Letras)
2 comentários:
Muito agradável leitura. Gostei da postagem. E da ideia.
E descobre-se sozinho. Livre e solitário. Daí bate a saudade, do conforto, da família.
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