Maria levanta os dois braços, a camiseta desce cobrindo pouco a pouco seu corpo: sua cabeça, seus seios, seu tronco. O descenso termina exato quando a vestimenta já lhe cobre. A aurora do sul vaza a janela, reflete no espelho, que por sua vez joga a luz na porta de seu guarda-roupa. É a emissão do atestado de que um novo dia está por começar, outra relação de sentimentos a serem discutidos para colocá-la no entendimento da situação, na felicidade conta-gotas, no aborrecimento avalanche de todas as manhãs. Poupou o café novo; preferiu, mais por economia de instantes, se abastecer do café requentado, amanhecido e repousado na pia naquela madrugada fria. Pegou o bule, que lhe escapou das mãos provocando o primeiro estardalhaço daquele dia - o alumínio retinindo contra a cerâmica que cobria o chão frio da cozinha fria. Era tão algures, mas desinteressada daquela verdade, não se importa com tal ressonância, com o som agudo fervilhando nos ouvidos, ou nos ouvidos daqueles com quem dividia o quintal. É muito provável que boa parte dos patriarcas ou matriarcas daqueles clãs já tenha partido para a lavoura mecânica da cidade, a muitos quilômetros dali. No máximo, quem sobrara no quintal eram os filhos, os mais velhos para cuidarem dos mais novos; era o que percebera até então no quarto de ano que passara ali. A sua família era ela mesma, prestava contas apenas para si, mas isso não matava a força supra que ainda conseguia retirar do café passado, daquelas manhãs desbotadas e embaçadas. Mesmo depois do rosto lavado e do sono descaracterizado, regia as idéias para supri-la de alguma boa nova, que nem sempre acontecia nos dias de todos os dias. A felicidade para Maria era impessoal, não estava ligada a coisas de sorte ou oportunidade, estava mais para as coisas de espírito e de percepção, de retenção do bom estado e da harmonia de como se retém a energia que constrói o mundo, em cada segundo de cada pensamento. Stand Inside Your Love Amor recupera tudo. Pra tudo deve recuperar Amor. Sempre aprendeu nas letras dos cadernos da escola, naquelas caligrafias ginasiais amarfanhadas pela mochila. Aprendia sobre a energia elementar, sobre as dissoluções da física nuclear, da força centrífuga, dos vetores e das unidades de força, da mistura periódica de gases e tempo, de outras coisas dos homens resumidas na tabela de períodos, de símbolos. O balão da memória lhe enchia o tórax de ar, saciava-se da hora nervosa da ebulição efervescente da lembrança armazenada na instância superior de sua consciência. Era um pensamento limítrofe pensar naquilo de “novos dias”, de “novas idéias”: tudo a incomodava num perímetro maior de que os seus braços podiam alcançar, e nunca podiam ser alcançados mesmo e ser postos para fora da zona que ela considerava segura o suficiente para manter pleno o funcionamento de seu coração em contigüidade com a racionalização do momento, daquilo que residia lá, na matéria que a desmoronava em nostalgia – e nostalgia era o nome que se dava à matéria liquidificada pelo sentimento de quem se amanhava e se alimentava da liquefação do tempo existido, ido, datado em uma dimensão apartada da realidade do respiro, do agora que era da manhã que nasceu. Maria saiu, viu a manhã e o sol rebater no retrovisor do carro que saía da garagem a quatro portões do seu. O dia já existia.
***
Já era tardezinha quando notou o barulho das árvores e suas folhagens farfalhando desertas na pequeneza ou na esperteza daquele lugar, do universo. A hora do belo ensaio da despedida do sol contra a aspereza do que fora o dia para Maria. Caminha até a praça que conhecera apenas há alguns dias, ali era o lugar de que se lembrava naquela cidade onde pudesse repousar e libertar-se dos pensamentos que a incomodavam, e que a empurravam para o abismo da solidão. Maria é nova na praça, na cidade. Maria é nova para Maria. Desde que saiu de casa para os préstimos da vida, para a vitória, havia nela uma sensação de estranhamento sobre todas as coisas - a ausência do pai, da mãe, da irmã lhe esvaziavam o peito de ar, alimentando-a de soluços secos, mas que não a prostravam na condição. O peito já não se enche e nem se sobrepõe como na manhã. Naquela hora, o negrume é só o de seus cabelos na penumbra, forte, longe do feixe de luz que emana do poste, onde prosta seu corpo leve e cansado. Maria é bonita, no simples e objetivo sentido da palavra. Seus olhos castanhos, amêndoas, pareciam dinamitar os detestáveis. Seus cabelos também castanhos, lisos, ganhavam descanso em seus ombros pequenos suaves e ainda tão fortes. Maria tem vinte e um. Os seus sonhos parecem ter muito mais que a sua idade, parecem muito antigos e com um frescor que adolesce com certa intensidade. Maria nunca estivera antes em uma cidade tão grande, tão tensa, tão formosa e com tantos olhares que deflagravam alegria e tristeza quase na mesma proporção. Maria nunca estivera tão só. Fora criada e educada numa cidade pequena, onde as arestas do município eram bem conhecidas: as pessoas tinham nomes, dividiam as vidas com a cidade e multiplicavam confiança. Viera para a cidade para o estudo superior, para a faculdade, tão sonhada pelo pai, de Agronomia. O seu pai a via muito logo gerindo os negócios, cuidando da produção e distribuição das hortaliças, cuidando de seus contatos com os distribuidores, das vendas e ampliando o empreendimento. Sempre que se via nos sonhos do pai Maria não se via. A projeção do futuro era difícil para Maria, como um projetor sem filme para rodar. Naquela tarde, quando tentava assimilar um momento bom e uma fuga do estabelecido, desde o ritual de vestir-se com a blusa de alças finas ajustando-se ao corpo, chorou, chorou como criança, mas Maria ainda era uma infante, percebeu o refúgio quente no cigarro onde tragou angústia, tentou convencer-se de que aquele vazio se dissolveria no ar, tal como a fumaça do cigarro. Agora estava com a ponta do cigarro nos dedos e com os olhos nela, e a cabeça fora dela: o vazio permanecera. O seu relógio marca cinco e quarenta e cinco; o sol se prepara pra sair, é quando despeja melancolicamente a luz que dava a cor de saúde à pele desbotada de seu rosto, e escondida sob o cardigã vermelho - presente da mãe. O choro poderia ser abafado pela manga do cardigã, como foi; o som agudo e baixo da sua baixa sintonia poderia ser ouvido, ainda assim, por quem passasse por ali. Tentou entender de que precisava de um controle, caminhou, ainda com os olhos encharcados e vermelhos, sentia. Estava restabelecendo quando sorveu o primeiro gole da coca-cola que comprou ali, naquela esquina que observara todo o tempo enquanto esteve sentada, onde acompanhou o movimento, a deslocar dos transeuntes; quantos problemas cortavam aquela esquina, quantas lembranças esfumaçavam ante os ônibus e os táxis que paravam ali, naquela esquina que observou durante toda a tarde e onde comprou a coca que lhe resolvia. A bebida descia como uma droga experiente que lhe acalmava: era um placebo. A bebida gasosa era um dos paliativos de que utilizaria para ânimo ou para despistar os olhos dos outros de seus olhos vermelhos e ainda úmidos. Precisava de uma aspirina ou de qualquer coisa que a exonerasse daquela dor de cabeça que começava a incomodar. Abre a bolsa à procura do comprimido, e vê que trouxe consigo o discman: precisava mesmo de uma música que fosse. Melodias seriam o analgésico de Maria. Algumas notas poderiam trazer a Maria do início do dia, mais confiante de si, menos inebriante, com mais sentidos que suporia quem pudesse olhar para o seu rosto pequeno, coeso e esvaído de um torpor de sentimento. Um dos fones de seu discman não funcionava. Ligou o aparelho que agora poderia ser uma salvação da noite e esquecer de que poderia não ter tido aquela tarde, aqueles pensamentos. E com apenas um dos fones começou a ouvir Nick Cave & the Bad Seeds. Deixara o Let Love In dentro no aparelho porque o amava. Era um daqueles casos de amor e cumplicidade de que não se consegue explicar. Nick Cave era uma jóia para Maria, as suas canções a amornara e a desestranhara da vida já tantas vezes, desde os dezessete, quando assistiu a um filme, do qual não lembrava o nome, no velho videocassete de Ângela, sua amiga de infância e de travessuras juvenis. Haviam pegado o filme porque o professor de história pediu para a composição de um trabalho sobre a Alemanha do pós-guerra, e para isso consultariam uma bibliografia extensa; e um dos filmes da lista era este de que Maria se lembrava do som, menos da imagem. Nick Cave aparecia no filme, desfiando toda a insalubridade de que Maria sentia desde a pré-adolescência, quando percebia alterações significativas no seu pequeno corpo esguio. Cave, para Maria, era a resolução das funções matemáticas e biológicas alimentadas pela sua cabeça jovem, pelas impertinências, pelas indecências camufladas sob a película de seus sonhos, que ganhavam formas sob seus olhos de retinas sisas e brilhantes. O dia já transformado em noite ficara menos denso, com música para os ouvidos e para o peito de Maria. Algo ainda não se encaixara no eixo de suas idéias, mas a cabeça de Maria parecia entender com mais frieza sobre o destemperamento da lógica por que caminhava em seu mundo. A música arruínou a sua, agora finita, deprimência; ergueu-se a lembrança do dia e a mostrou à noite. Maria tinha música no coração. As debilidades se encaixavam a partir daquele momento, e todo o equilíbrio parecia estar de volta; desde o momento em que se levantou e sentiu o vento do sul soprar através das venezianas, mas não tinha luz ali que pudesse vazar até onde estava, mas havia ao menos uma nesga de luz para os seus movimentos, e sentia a partir de então que uma enorme causa dentro de si ganhava gás, na força incontinenti de Maria. Tinha algo mais nela que não podia ser sorvido com a bebida, e parava na garganta. Não se sabe mais se é aquela angústia tragada no cigarro ou se é o choro que lhe quer render. Tudo está mais calmo, e Maria sabia que tinha, além de música no coração, a sensibilidade de que a luz que procurava ali não brilharia. Com os olhos secos, com a boca seca, os pensamentos secos levantou, caminhou, olhou para o céu, como se para fiscalizar a quantidade de estrelas daquela noite, e ficou minutos com a cabeça erguida para os pontos de luzes distantes que a noite exibia. Mais decidida sobre a vida, sobre aquela noite, sorriu com uma honestidade de criança, serelepe, e saiu. O seu caminho a esperava por aquela hora, aquele era o momento da honestidade e o da superação: a vez do caminho de volta e a de passar a limpo os dois dias que fora aquele dia.
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Já era tardezinha quando notou o barulho das árvores e suas folhagens farfalhando desertas na pequeneza ou na esperteza daquele lugar, do universo. A hora do belo ensaio da despedida do sol contra a aspereza do que fora o dia para Maria. Caminha até a praça que conhecera apenas há alguns dias, ali era o lugar de que se lembrava naquela cidade onde pudesse repousar e libertar-se dos pensamentos que a incomodavam, e que a empurravam para o abismo da solidão. Maria é nova na praça, na cidade. Maria é nova para Maria. Desde que saiu de casa para os préstimos da vida, para a vitória, havia nela uma sensação de estranhamento sobre todas as coisas - a ausência do pai, da mãe, da irmã lhe esvaziavam o peito de ar, alimentando-a de soluços secos, mas que não a prostravam na condição. O peito já não se enche e nem se sobrepõe como na manhã. Naquela hora, o negrume é só o de seus cabelos na penumbra, forte, longe do feixe de luz que emana do poste, onde prosta seu corpo leve e cansado. Maria é bonita, no simples e objetivo sentido da palavra. Seus olhos castanhos, amêndoas, pareciam dinamitar os detestáveis. Seus cabelos também castanhos, lisos, ganhavam descanso em seus ombros pequenos suaves e ainda tão fortes. Maria tem vinte e um. Os seus sonhos parecem ter muito mais que a sua idade, parecem muito antigos e com um frescor que adolesce com certa intensidade. Maria nunca estivera antes em uma cidade tão grande, tão tensa, tão formosa e com tantos olhares que deflagravam alegria e tristeza quase na mesma proporção. Maria nunca estivera tão só. Fora criada e educada numa cidade pequena, onde as arestas do município eram bem conhecidas: as pessoas tinham nomes, dividiam as vidas com a cidade e multiplicavam confiança. Viera para a cidade para o estudo superior, para a faculdade, tão sonhada pelo pai, de Agronomia. O seu pai a via muito logo gerindo os negócios, cuidando da produção e distribuição das hortaliças, cuidando de seus contatos com os distribuidores, das vendas e ampliando o empreendimento. Sempre que se via nos sonhos do pai Maria não se via. A projeção do futuro era difícil para Maria, como um projetor sem filme para rodar. Naquela tarde, quando tentava assimilar um momento bom e uma fuga do estabelecido, desde o ritual de vestir-se com a blusa de alças finas ajustando-se ao corpo, chorou, chorou como criança, mas Maria ainda era uma infante, percebeu o refúgio quente no cigarro onde tragou angústia, tentou convencer-se de que aquele vazio se dissolveria no ar, tal como a fumaça do cigarro. Agora estava com a ponta do cigarro nos dedos e com os olhos nela, e a cabeça fora dela: o vazio permanecera. O seu relógio marca cinco e quarenta e cinco; o sol se prepara pra sair, é quando despeja melancolicamente a luz que dava a cor de saúde à pele desbotada de seu rosto, e escondida sob o cardigã vermelho - presente da mãe. O choro poderia ser abafado pela manga do cardigã, como foi; o som agudo e baixo da sua baixa sintonia poderia ser ouvido, ainda assim, por quem passasse por ali. Tentou entender de que precisava de um controle, caminhou, ainda com os olhos encharcados e vermelhos, sentia. Estava restabelecendo quando sorveu o primeiro gole da coca-cola que comprou ali, naquela esquina que observara todo o tempo enquanto esteve sentada, onde acompanhou o movimento, a deslocar dos transeuntes; quantos problemas cortavam aquela esquina, quantas lembranças esfumaçavam ante os ônibus e os táxis que paravam ali, naquela esquina que observou durante toda a tarde e onde comprou a coca que lhe resolvia. A bebida descia como uma droga experiente que lhe acalmava: era um placebo. A bebida gasosa era um dos paliativos de que utilizaria para ânimo ou para despistar os olhos dos outros de seus olhos vermelhos e ainda úmidos. Precisava de uma aspirina ou de qualquer coisa que a exonerasse daquela dor de cabeça que começava a incomodar. Abre a bolsa à procura do comprimido, e vê que trouxe consigo o discman: precisava mesmo de uma música que fosse. Melodias seriam o analgésico de Maria. Algumas notas poderiam trazer a Maria do início do dia, mais confiante de si, menos inebriante, com mais sentidos que suporia quem pudesse olhar para o seu rosto pequeno, coeso e esvaído de um torpor de sentimento. Um dos fones de seu discman não funcionava. Ligou o aparelho que agora poderia ser uma salvação da noite e esquecer de que poderia não ter tido aquela tarde, aqueles pensamentos. E com apenas um dos fones começou a ouvir Nick Cave & the Bad Seeds. Deixara o Let Love In dentro no aparelho porque o amava. Era um daqueles casos de amor e cumplicidade de que não se consegue explicar. Nick Cave era uma jóia para Maria, as suas canções a amornara e a desestranhara da vida já tantas vezes, desde os dezessete, quando assistiu a um filme, do qual não lembrava o nome, no velho videocassete de Ângela, sua amiga de infância e de travessuras juvenis. Haviam pegado o filme porque o professor de história pediu para a composição de um trabalho sobre a Alemanha do pós-guerra, e para isso consultariam uma bibliografia extensa; e um dos filmes da lista era este de que Maria se lembrava do som, menos da imagem. Nick Cave aparecia no filme, desfiando toda a insalubridade de que Maria sentia desde a pré-adolescência, quando percebia alterações significativas no seu pequeno corpo esguio. Cave, para Maria, era a resolução das funções matemáticas e biológicas alimentadas pela sua cabeça jovem, pelas impertinências, pelas indecências camufladas sob a película de seus sonhos, que ganhavam formas sob seus olhos de retinas sisas e brilhantes. O dia já transformado em noite ficara menos denso, com música para os ouvidos e para o peito de Maria. Algo ainda não se encaixara no eixo de suas idéias, mas a cabeça de Maria parecia entender com mais frieza sobre o destemperamento da lógica por que caminhava em seu mundo. A música arruínou a sua, agora finita, deprimência; ergueu-se a lembrança do dia e a mostrou à noite. Maria tinha música no coração. As debilidades se encaixavam a partir daquele momento, e todo o equilíbrio parecia estar de volta; desde o momento em que se levantou e sentiu o vento do sul soprar através das venezianas, mas não tinha luz ali que pudesse vazar até onde estava, mas havia ao menos uma nesga de luz para os seus movimentos, e sentia a partir de então que uma enorme causa dentro de si ganhava gás, na força incontinenti de Maria. Tinha algo mais nela que não podia ser sorvido com a bebida, e parava na garganta. Não se sabe mais se é aquela angústia tragada no cigarro ou se é o choro que lhe quer render. Tudo está mais calmo, e Maria sabia que tinha, além de música no coração, a sensibilidade de que a luz que procurava ali não brilharia. Com os olhos secos, com a boca seca, os pensamentos secos levantou, caminhou, olhou para o céu, como se para fiscalizar a quantidade de estrelas daquela noite, e ficou minutos com a cabeça erguida para os pontos de luzes distantes que a noite exibia. Mais decidida sobre a vida, sobre aquela noite, sorriu com uma honestidade de criança, serelepe, e saiu. O seu caminho a esperava por aquela hora, aquele era o momento da honestidade e o da superação: a vez do caminho de volta e a de passar a limpo os dois dias que fora aquele dia.
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