sexta-feira, 29 de maio de 2009

O gosto das abóboras

Há pouco, li o livro Vida e Tempo de Michael K (Life & Times of Michael K), de J. M. Coetzee. É o segundo livro que leio do escritor sul-africano. O meu primeiro contato com o universo desgraçado de Coetzee foi com Desonra (Disgrace).

Michael K, apesar de curto, carrega uma densidade difícil de explicar. Apenas lendo-o para saber do seu poder, do quilate das palavras diretas de Coetzee sobre o universo e a vida da personagem-título, da devastação que ela nos causa ao nos surpreender com uma vida totalmente equivocada, não por Michael, mas pelo meio em que este nasceu e foi criado. Como um amigo das letras já me disse, Michael K é uma das mais fortes composições literárias contemporâneas, e é difícil terminar o livro e não ter a sensação de que é preciso agora "recuperar-se".

Michael K é um errado ou errante, que tenta, como inicia a narrativa, trazer um pouco mais de tranquilidade a mãe, muito idosa, e tentar levá-la, através de um carrinho de mão adaptado, para uma melhor sorte, onde ela possa descansar e passar a sua velhice, seus últimos dias. Mas é no meio desta empreitada que Michael perde sua mãe, com a saúde já tão debilitada por tantos anos de sofrimento, trabalhando como faxineira e vivendo de favores para uma família da Cidade do Cabo.

Michael K tem lábio leporino - fissura na região do palato que provoca má formação do lábio superior - o que, juntamente com a sua condição social, faz com que seja alvo de inúmeros preconceitos. A vida de Michael, e como Michael não interage com o mundo, é a potencialidade do texto de Coetzee. Michael está pronto para viver, para ser?

Por este romance, Coetzee recebeu o seu primeiro Booker Prize - o prêmio mais importante da literatura de língua inglesa -, em 1983. Receberia dezesseis anos depois, em 1999, o segundo prêmio, por Desonra. Em 2003, Coetzee foi laureado com o Nobel de Literatura.

Há uma passagem no livro em que Michael K, isolado, tentando juntar forças para subsistir num país assolado pela guerra, em uma propriedade abandonada, na cercania das montanhas, processa o cultivo de abóboras. E são estas que darão um sabor único ao romance, mesmo ao nosso paladar. A destreza com que Coetzee narra a forma como Michael prepara as abóboras, o único alimento que conseguira da terra com certa bonança, é de dar água na boca aos mais discrentes do sabor desta cucurbitácea, da forma com que se apresenta pelas palavras simples, objetivas, mas perspicazes, de Coetzee. Sentimos fome.

O Vida e Tempo de Michael K, seja pelas abóboras, ou pela falta de sal ou pela ausência de canela em pó, é um romance inimaginavelmente lúcido, cuja leitura jamais será gratuita: aprendemos.

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