sábado, 11 de agosto de 2007

My Heart Is a Lonely Hunter


Ouço um jazz latino, uma música de piano e ouço (ou imagino) uma espanholita a latrinar nos meus ouvidos. Um copo de Martini sobre a minha escrivaninha combinaria com a ocasião, se pelos menos fosse adepto ao ritual da regação do espírito, nestes momentos em que a solidão solitária desemboca sem hora pra dormir, nós conosco, às 5h08 da manhã. Tranqüilo, ninguém te espera esta manhã, ninguém vai perceber que não está lá. Sem ninguém para observar o nosso estado nesta manhã de ausência externa e de presença consigo mesmo, não há ninguém para medir o nosso absurdo, e não há ninguém para opinar, compartilhar, xingar, carregar-nos da mesa ou tirar-nos do chão. Ninguém pra socorro, ninguém pra esporro.
Deixa pra lá, isso parece parêntese de literatura gótica, ou de poesia de T.S. Elliot, mas não é. Está mais pra Poe, uma poética de devaneio ou Carson McCullers, que aparece-me, na minha imaginação, como uma ninfeta desenhada por uma magnitude obscura e serena. Como essa ninfeta me deu e ainda dá prazer, e compartilho com ela um êxtase literário que resvala na sensibilidade sexual.
A primeira vez que li algo sobre ela, McCullers, se não estiver enganado, foi numa crítica ou ensaio do escritor americano Graham Greene, onde ele a citava e a comparava com outros grandes da literatura americana, como Faulkner e D.H. Lawrence... Aí, você já sabe, né? Se já leu alguma coisa desses dois aí, ou do próprio Greene, então, a curiosidade naturalmente aperta. Eu, comigo mesmo, dizia, "caramba, tenho que ler para ver como é que é, deve ser bacana."
A identificação e atração pela prosa sulista de McCullers foi instantânea. O primeiro livro que li dela foi o A Balada do Café Triste, em português (edição de Portugal), e hoje tenho quase todos os livros dela, em sua lingua original, o inglês. No Brasil ela é ainda pouco conhecida, infelizmente, pois, até onde sei, nas duas últimas décadas (meu raio temporal de atuação de pesquisa e memória) houve apenas duas traduções de obras dela no Brasil, edições que, inclusive, já estão esgotadas há muito, os livros são A Sócia do Casamento (The Member of the Wedding) pela Nobel e o próprio A Balada do Café Triste (The Ballad of Sad Cafe) pela Globo.
Há traduções de praticamente todas as obras dela em português de Portugal (lê-se importadas deste país), mas estas já são mais difíceis de se conseguir nas livrarias brasileiras, mas, para quem lê inglês, mesmo que razoavelmente, esta é uma ótima oportunidade de praticar essa língua e desenvolver o hábito e prazer de ler obras no original, pois, a prosa de McCullers é saborosíssima, requintada e, ao mesmo tempo que rica, acessível, mas, é preciso fazer ressalvas, pois, uma leitura deste tipo pode ser um tiro pela culatra. Mas, todo o risco é válido para conhecer e provar deste "êxtase".
Suas novelas, contos e romances já se tornaram peças de teatro e roteiro de filmes, o destaque dentre estes é o filme Pecado de Todos Nós (The Reflections In a Golden Eye - 1967), de John Huston, com Marlon Brando e Elizabeth Taylor, o elenco em si já dispensaria minha sugestão, sem contar com as presenças de Brian Keith e Julian Harris, vale a pena assisti-lo, pois o roteiro é baseado no livro homônimo de McCullers. Bom, o filme é de John Huston, então...
O livro The Reflections In a Golden Eye (1941) foi lançado logo depois da sensação The Heart Is a Lonely Hunter (1940), quando McCullers, só com 23 anos, destronou o coração de muita gente para torná-lo então num solitário caçador.
Carson McCullers retoma, de alguma forma, o inebriante universo de Dostoyevsky, quando alude a tragédia em cada suspiro de seus personagens. Miss Amélia, Spiros Antonapoulos & John Singer (dois surdos-mudos) e Franky são as sínteses da fábula de McCullers. Funcionam como válvula de escape de uma vida conturbada e difícil da prodigiosa Carson.
McCullers estudou nas escolas de escritores nas universidades de Columbia e Nova York, em 1937 casou-se com Reeves McCullers, de quem herdou o sobrenome. Três anos depois, quando o casal já residia na Carolina do Norte, separam-se. Nesta época, menos reclusa, aproximou-se de intelectuais e constituiu com estes boas amizades, tal como a com o dramaturgo e escritor Tennessee Williams. Bissexual, não teve felicidade nos relacionamentos com as mulheres até conhecer a escritora suíça Annemarie Clarac-Schwarzenbach (um "anjo devastado", diria Thomas Mann) - que já havia encantado certa vez Anaïs Nin. McCullers dedicou Reflections... à Annemarie, de uma vida também trágica, que morreu jovem, aos 34, depois de uma queda de bicicleta que lhe causou um traumatismo e uma hemorragia.
Aos 50, em 1967, Carson McCullers repousou para esta vida quando já havia sido eternizada como uma das maiores da literatura do século XX. A tragédia maior da vida desta escritora foi, como a de muitos, garimpar felicidade e paz em terrenos não muito propícios , rodeada de pessoas não preparadas para saciar suas necessidades.
Espero, sinceramente, que McCullers seja ainda muito revista, pois, a sua prosa carrega uma bipolaridade extenuante, e de um desequilíbrio final que extravaza nas paisagens e nos personagens que criou. Ler e descobrir os meandros de suas histórias é jogar malabares e tentar segurá-los a cada fim de página, com a sensação de que este é o príncipio de se ler Carson McCullers, comprometer-se com o equilíbrio à leitura de histórias tão duais, tão deformadas.
Ela, hoje, reside comigo num lugar especial na minha estantezinha...

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