Um tédio indesejável e adorável tem me apresentado todas as noites pontualmente às dezoito horas. Sempre vem à minha cabeça, O que fazer? Caminhar? Primeiramente, para a caminhada é preciso um caminho - não tenho caminhos - escolho a pesquisa de outras possibilidades mais gratas, menos árduas do que a busca de caminho que possibilite uma caminhada para espantar um tédio que se apresenta invariavelmente às seis da tarde; coincidência inevitável ou não com o horário do fim do expediente? As aulas na faculdade não têm existido há muito, este tipo de inexistência resulta em noites vagas. Extinção de aulas fomenta magníficos e assassinos na busca de um ofício e de uma serventia. Vago por aí. O tédio é indesejável à medida do tamanho em que se vê encurralado por ele e deixa-o dominá-lo; adorável na mesma proporção em que o teu singelo espírito desencanta e descobre a estradinha de ladrilhos amarelos para dissipar todo o seu ócio e a força vital que te sujeita aos prazeres, dos mais banais aos sofisticados que sua cabecinha e seu corpozinho necessitam que sejam devidamente saciados. Terça-feira, cinco de junho de dois mil e sete - um dia de iluminações; melhor, uma noite de iluminações, onde procurava por uma iluminação que preenchesse a minha estante de Leste Europeu, a minha guarnição de escritores russos, o meu estoque de sentenças Dostoyevsky. Situação não árdua, até simples, mas que levei horas perdido entertido num sebo da Consolação, consolando-me do que havia de bonito ali que ainda não tinha em minha estante. Consolando-me que ainda os teria. Ah, meu estoque de sentenças Dostoyevsky desfalcado... Falta-me os Irmãos Karamazov, pensei, aqui deve ter e posso sair e já fazer valer de alguma forma esta noite bonita, sim, e preenchida de um frio irresistível que deixavam pessoas mais irresistíveis - parcas, botas, suéteres, colã. Dizem que no inverno as pessoas ficam mais elegantes. Há uma certa verdade, mas no inverno é onde as pessoas melhor se fantasiam também para protegerem-se do frio. Oras, não vá me dizer que debaixo daquele blusinha da nova estação comprada na última semana inspirada na última semana de Milão não é preenchida muitas vezes por uma camiseta desbotada, amassada ou mesmo rasgada; bem, surge aqui, no inverno, a arte de transmutar-se, deixar o que jamais deve ser mostrado bem às escondidas e mostrar-se, como máscara, ou uma casca de ovo que reveste um conteúdo desintegrado - é uma época de fato belíssima e de muitas aparências, de mentirinhas ordinárias das quais todos nós gostamos, por certo. A aventura pelo Dostoyevsky não terminou, voltemos a ela. Eu queria os Karamazov, os teria o homenzinho de barba branca que me atendeu? Pois não, jovem?, Sim, quais são os russos por aqui, onde estão os russos, em quais destas, senhor? Por aqui. Você procura Dostoyevsky, não é?, a letra D logo aqui, desculpe, um pouco mais acima. Ah, sim, obrigado, encerrei muito breve. Após o diminuto diálogo, pus-me a procurar pelo russo que apoquentava os nervos por não tê-lo lido ainda, ai, russo de merda que adoro, este era Dostoyevsky. Enfim, encontrei o estoque de sentenças Dostoyevsky que procurava, lá estavam os Irmãos, reluzindo com um micro-dourado que compunha sua lombada, uma edição um pouco antiguinha, sei lá, creio que dos setenta e poucos, mas isso não importava; a verdade era que o russo estava ali reluzindo pra mim na minha mão. Mas, o Idiota - homônimo de outra obra do russo - aqui não se deu que conta que não tinha notas ali, para pagar o livro. Merde! Não que estivesse na pindaíba, mas quase, mas é que o idiota acostumou-se com uso sensorial das compras utilizando o cartão de débito, nessas tem esquecido corriqueiramente de realizar saques periódicos de seu ordenado junto ao banco. Certo, O senhor aceita cartão de débito?, O senhorzinho de barba branca me respondeu com uma vozinha, não ouvi. Perguntei novamente, o senhorzinho, mais grave, respondeu que aceitava cartão de débito, mas de uma bandeira distinta da do meu cartão. Ah. Estava quase convencido de que não seria o dia de levar o russo mesmo daquela vez. Triste. Este russo na livraria onde trabalho está esgotado. Merde! Paciência, garoto - tentei começar uma reflexão. Mas é um livro que não era difícil de se achar, uma obra essencial da estante de qualquer Leste Europeu ou mesmo de qualquer coisa que chamam de Literatura Universal, não seria mesmo nenhum bicho encontrar outra, mas havia achado graciosa aquela já muito manuseada edição que bulinei; que violei ao deslizar as minhas unhas já impregnadas de sebo de pó por aquelas páginas já tão violadas por quantas vão lá saber gerações... Mas, certo, esperarei outro dia para levá-la. Se é que estará lá, né? Experiências anteriores, como poderia já Herman Melville armar... Deixei certa vez o Bartleby lá, certinho, bonitinho... Voltei, Bartleby já não existia mais. Desespero. Ponto. Certo, da próxima atento-me à pizza e a cola, adjuntos da minha busca por prazer nas noites ociosas, frias e quentes, de vontades meio absurdas de estufar-se em massa e deste líquido gasoso, prazeroso, criminoso... Vulgar como este meu estoque de sentenças Dostoyevsky incompleto.
(fim da parte 1)
Um comentário:
Dois meses depois, digo: o show do sueco-portenho foi ótimo... mas se você tivesse ido, não surgiria este texto, me entretenimento nessa noite inútil de sábado...
Beijo,
Dolores
www.gavetacheia.blogspot.com
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